sexta-feira, 26 de março de 2010

O que é morrer?

Conferiram-se nomes, moradas, filiações; cuidou de saber-se da presuntiva troca de identidades, falsificação de documentos e... nada ; compararam-se fichas dentárias etcetera e tal e … nada: o morto de ontem era o morto de há um ano. Ora, o trabalho de quotio havia ensinado ao inspector Gouveia que os defuntos não andam por aí a morrer mortes várias, muito menos em defunções tão excruciantes como aquelas que tinham ocorrido ontem e há exactamente um ano.
Homem de assomos repentistas, o inspector Gouveia decide, por fim, a exumação do morto pretérito, para o comparar com o morto presente e jacente no Instituto de Medicina Legal. Fazem-se as diligências necessárias, obtém-se a autorização do juiz, ruma-se ao jardim do prior em dia aprazado, e, pá ante pá e com respeitos devidos ao domicílio e à condição do domiciliado, desentranha-se da terra a urna, quitando-a à voragem e voracidade da bicheza.
Rangem os metais ferruginosos do tampo do esquife. Um calafrio álgido perpassa na espinha ancilosada do inspector Gouveia. O morto escafedera-se, e ali, em vez das ossadas, uma folha de papel em vias de consumpção ameaça porfirizar-se. Gouveia baixa-se, desenrola-a num quase ritual de minúcias digitais, assesta o olhar coreográfico falsamente incurioso de detective ronhoso, e teria feito in situ uma leitura frustre, não fosse o desvelo do coveiro e do presidente da junta, que aproximavam as suas cabeças da dele numa intimidade de amorio.
Coloca o papel no bolso, lê a inscrição mors est latro hominis no lagedo granítico e, quando se prepara para o sapateio esconjurador no portão férreo a desempoeirar as botas do terrunho do cemitério, toca o telemóvel. O morto da véspera desaparecera do Instituto de Medicina Legal. Gouveia leva a mão ao entreforro do bolso, desenrola a folha como um rabi a Tora ou o mulah o Alcorão, e, com unção, lê alto como se fora um salmo ou uma surata - Morrer é não ser visto

domingo, 21 de março de 2010

Filosofia e Prostituição


« O filósofo, desiludido dos sistemas e das superstições, mas ainda perseverante nos caminhos do mundo, deveria imitar o pirronismo de trottoir que exibe a criatura menos dogmática: a prostituta. Desprendida de tudo e aberta a tudo; esposando o humor e as ideias do cliente; mudando de tom e de rosto em cada ocasião; disposta a ser triste ou alegre, permanecendo indiferente; prodigando os suspiros por interesse comercial; lançando sobre os esforços de seu vizinho sobreposto e sincero um olhar lúcido e falso, ela propõe ao espírito um modelo de comportamento que rivaliza com o dos sábios. Não ter convicções a respeito dos homens e de si mesmo: tal é o elevado ensinamento da prostituição, academia ambulante de lucidez, à margem da sociedade como a filosofia. "Tudo o que sei aprendi na escola das putas", deveria exclamar o pensador que aceita tudo e recusa tudo, quando, a exemplo delas, especializou-se no sorriso cansado, quando os homens são, para ele, apenas clientes, e as calçadas do mundo o mercado onde vende sua amargura, como suas companheiras seu corpo.»

Breviário de Decomposição - Cioran

quinta-feira, 18 de março de 2010

Filosofia, Virillio e a Dromologia


Há uma compulsão contemporânea pela velocidade. Automóveis mais rápidos, viagens mais rápidas, ligações à Internet mais rápidas, comida mais rápida, sexo mais rápido, conhecimento mais rápido. Pode conceber-se uma filmografia sobre esta compulsão hodierna,uma bibliografia,uma discografia. Pode até esboçar-se uma tenteante ciência - a dromologia - como fez Paulo Virillio, filósofo atento à aceleração do tempo humano e à proliferante tecnicização do espaço.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Experiência do Pensamento.


De 15 de Março a 15 de Abril as Livrarias Almedina apresentam a Experiência do Pensamento. Muitos livros de filosofia com alguns descontos. Os rabiscos, magníficos, são do autor do blog irmaolucia, Pedro Vieira.

terça-feira, 16 de março de 2010

Turismo e Viagens: as Grandes Evasões Bárbaras 1


Dezassete horas. Uma aula de filosofia de noventa minutos(ufa!). O que é uma lei física? O tédio a acelerar na razão directa do tempo e na razão inversa do quadrado da distância da porta de saída. A evasão é impossível. De sorrate, o olhar descobre um pequeno círculo no canto superior da secretária com a seguinte legenda - carregue no botão e o professor desaparece. De sorrate, a mão avança. Outro círculo - carregue no botão e é teletransportado para uma praia deserta no Hawai. A mão hesita e os dedos tamborilam no tampo. De sorrate ainda, resoluta, prime o botão, e o Francisco aparece na tal praia deserta com duzentos corpos a frigir ao sol.


Tenho um amigo que já foi à procura do paraíso ao Hawai e a outros destinos luxurientos, e se tornou num agnóstico do turismo e das viagens. Agora, descansa verdadeiramente o mês de agosto inteirinho, engolido pelo sofá, a ver travel channels e a bebericar Alvarinho frappé. Um outro, sofreu uma paralisia facial quando se preparava para almoçar num remotíssimo lugarejo da Patagónia e encontrou o Ronald da MacDonalds. Agora, em casa no mês de Julho, apura l`art de maîtriser le feu, e degusta no mês inteirinho sapidíssimos petiscos.
Viajar já não é o que era - dizem os antropólogos. Viajar é até desaconselhado nalguns casos - dizem os Psis alarmados com os picos de stress e ansiedade nos períodos de férias. O turismo recalcou o sentido civilizacional da viagem como busca da verdade, da paz, da imortalidade, na procura e na descoberta dum centro espiritual, e transformou os hodiernos viajantes meteóricos em consumidores de lugares, pasteurizados, empacotados (os pacotes turísticos). Contrariamente ao que se diz, já não há estradas que vão dar ao mundo inteiro nem viajantes que sigam o conselho de Buda - não podes percorrer o caminho antes de te tornares no próprio caminho.
Hordas de bárbaros voam de continente para continente, de país para país,esbaforidos,sobraçando bagagens, à procura do lugar mítico do catálogo, que transformou o percurso num trajecto de reconhecimento, sem lugar para o estranhamento e o inusitado. As pessoas não querem realmente ir de férias. As pessoas querem ficar de férias.O problema é que o turismo é a nova crendice multicultural, como diz David Lodge, celebrado escritor inglês, no seu livro Notícias do Paraíso: «católicos, protestantes, hindus, muçulmanos, budistas, ateus - a única coisa que têm em comum é a crença inabalável na importância de ver o Parténon, a capela Sistina, a Torre Eiffel».
O meu amigo não quer voltar ao Hawai. Diz-me que só no ano passado seis milhões de
pessoas visitaram o destino, o que, convenhamos, é demasiada animação para um paraíso. Ultimamente tornou-se num feroz activista anti-turismo e, de forma intermitente, envia-me todos os textos panfletários que servem a causa. Aqui está o último:

« Os carreiros na região dos Lagos transformam-se em trincheiras.Os frescos da Capela Sistina estão a sofrer danos provocados pela respiração e pelo calor físico dos visitantes. Em cada minuto, cento e oito pessoas entram na Catedral de Notre Dame. O Mediterrâneo é uma sanita sem corrente de autoclismo e as probabilidades de apanhar uma doença para quem nele se banha são de uma em seis. Em 1987 tiveram de fechar Veneza porque estava cheia.»

Entretanto as agências de viagens publicitam as terras prometidas e a análise de conteúdo revela que só os tele-evangelistas e as testemunhas de Jeová lhes disputam a primazia no uso do promissor vocábulo - P-A-R-A-Í-S-O.

quinta-feira, 11 de março de 2010

quarta-feira, 10 de março de 2010

FREUD - Je t'aime ... moi non plus


















É a psicanálise, epistemicamente, uma teoria freudulenta? Acumula postulados infundados e propõe a existência de "objectos teóricos" fictícios ( Inconsciente, Complexo de Édipo, Tópicas)? É a ontologia do psiquismo humano proposta pelo Freudismo negada pelas neurociências? E do ponto de vista histórico-filosófico? Consuma a psicanálise o projecto crítico emancipatório das Luzes ou constitui uma regressão antimoderna e antifilosófica a uma Weltanschauung pessimista da civilização e da cultura? O pansexualismo freudiano é da direita ou da esquerda moral? Anarco-porno-libertário-libertino-permissivo ou rigorista? É a práxis terapêutica do psicanalista da ordem da magia? Os seus efeitos são da ordem dos placebos? Condenou Freud a masturbação e o onanismo por denotarem uma sexualidade narcísica? E a homossexualidade? Defende Freud nos seus escritos que a homossexualidade é uma sexualidade parcialmente desenvolvida e incompleta? É Freud um misógino falocrata que considera que a mulher é um rapaz inacabado.
Polémica interminável, protagonizada também por dois notáveis do mainstream cultural francês - Michel Onfray ( ao ataque) e Jacques-Alain Miller (à defesa) - no número de Fevereiro da revista Philosophie.

segunda-feira, 8 de março de 2010

tu és pó e ao pó retornarás

Sempre gostara de breviários - livros persistentes a ressumarem a santidade e unção dos beatérios. Gostava dos hinos coligidos,orações e apólogos,salmos e exempla dos evangelhos.Por isso,naquela quarta-feira de cinzas, alinhou a derradeira linha branca na capa negra cartonada e julgou apropriado pensar: “tu és pó e ao pó retornarás.”

quarta-feira, 3 de março de 2010

TIC, TAC, TIC, TAC, TIC, TAC...

Imagem retirada de http://xkcd.com/103/ com agradecimento ao Carlos Pires


Pum! Explodiu, súbita, a retórica das T.I.Cs. Não sabem o que é? Sabem mas estão fartos de acrónimos ininteligíveis? Acham que nas escolas e no ministério da educação se fala um dialecto tribal? Em verdade vos digo que não há visão salvífica da educação em Portugal que as não contemple, não há demagogo/pedagogo que não faça a sua apologia, não há discurso redentor de ministro que não fale delas, não há lei de bases em que não seja o mote, não há projecto educativo que não glose o mote. Em França, o acrónimo é mais extenso - N.T.I.C - e suscitou as reacções habituais:o infognosticismo crédulo, também habitual, de quem julga ter encontrado o antídoto para a ignorância generalizada dos alunos e para decénios de orientações educativas erradas; o cepticismo prudente, mais pontual, de quem compreende o poder encantatório das TI.Cs mas, previdentemente, desconfia da omnipotência das suas virtudes pedagógicas.
Jean-Marc Lévy-Leblond, fisico e epistemólogo francês, homem avisado, muito distante do intelectual pronto-a-pensar, considera que o desafio das TI.Cs nas escolas não é tanto e só o da formação técnica (como fazer?), mas sim o domínio dos seus usos sociais(para quê fazer?). Assim, por exemplo, explorar a Internet na aula seria também uma excelente oportunidade para a desmistificar, mostrando que nela não se encontram as maravilhas anunciadas e a solução dos problemas do acesso ao trabalho e à cultura.Mais recentemente, Umberto Eco,filósofo e homem atento aos sinais, veio dizer-nos que a conjugação compulsiva do verbo googlar está a imbecilizar meteoricamente os adolescentes; só que o étimo baculus (bastão), do qual deriva a palavra imbecil, já não é o instrumento de ajuda à mobilidade do bambo de perna ou mole de miolo, mas é sim o rato que aponta o cursor à infoesfera. Quase sempre ao vácuo e à vacuidade.

terça-feira, 2 de março de 2010

Conto curto a figurar num "MANUAL UNIVERSAL DE EDUCAÇÃO SEXUAL - Para Uso de Todas as Espécies"



«3. Ms. AMANTE
Este ano, Biologia I é leccionada por equipas. Um dos professores
chama-se Mr. Tott. A outra é Ms. Amante. Ms. Amante tem
pernas compridas e calça botas apertadas. O seu batôn é da cor
do sangue. Às vezes, quando pára para pensar no que dizer a
seguir, morde o lábio. O lábio vermelho e carnudo.
No capítulo da percepção, Ms. Amante diz que Hellen Keller
conseguia distinguir as pessoas com base no olfacto, perfumadas
ou não. Não é de perfumes que Ms. Amante fala. Refere-se antes
ao cheiro limpo da pele, que também os alunos podem sentir,
se tentarem. Diz que um homem pode adquirir uma fixação pelo
cheiro de determinada mulher, e ficar a suspirar por ela enquanto
segura uma camisola que retenha o seu perfume. Naquele dia, Ms.
Amante vestia uma camisola.
Há um toque de especiarias e terra no ar quando é a vez de
Ms. Amante dar aulas.
Ms. Amante diz, no capítulo dos artrópodes, que o louva-
-a-deus macho nunca sabe se vai ter sorte, se vai ser comido, ou
ambos. Diz isto com um sorriso que deixa os rapazes a pensar se
Ms. Amante lhes é capaz de ler o pensamento.
Os machos competem. Os melros de asa vermelha apressam-
se para norte na Primavera em busca de locais que possam
agradar às fêmeas. Os carneiros do Canadá fazem o embate dos
seus cornos ecoar pelas montanhas. Os veados cruzam chifres.
Os corcéis dão pinotes, coices e mordidelas. Certas gaivotas alimentam
as fêmeas durante a corte. Primeiro o jantar, depois o
acasalamento, diz Ms. Amante. Diz que os seres humanos gostam
de fingir que a biologia não se aplica a eles.
As suas unhas são do mesmo vermelho que o batôn. Tem
ancas largas.
Tanto trabalho para criar laços, e o resultado? Trinta por
cento das crias num dado ninho são prole de outro macho, e não
são as mães-pássaro as únicas a portar-se mal. As fêmeas do
coelho, do alce e do esquilo também petiscam às escondidas, e
não apenas com o sexo oposto.
Ms. Amante é casada. Nunca fala do marido.
Há uma hormona chamada oxitocina que inspira a vontade
de abraçar. E não só. A fêmea de um rato em ovulação que
receba uma dose suplementar de oxitocina esforça-se muito mais
para que os machos a montem. Enquanto nos informa disto, Ms.
Amante enuncia as palavras. A sua boca faz um O quando diz
"montem".
O capítulo das plantas vasculares parece ser quase todo
sobre flores. O macho da vespa vê a fêmea dos seus sonhos e
copula com ela. Depois vê a irmã - ainda melhor! - e repete a
dose. Na realidade, são duas orquídeas. As flores enganaram-no
duas vezes. Foi usado, descartado e obrigado a regressar a casa
sozinho. E os estudantes perguntam, Será que ele quer saber?
Oficialmente, esta especulação não faz parte do currículo. Ms.
Amante não responde.
A antera polinífera. O pistilo pegajoso. Quando Ms.
Amante os descreve, todos os alunos, rapazes e raparigas, querem
aprender mais, mais, mais.»

Pequenos Mistérios - Bruce Holland Rogers

GÉNERO HOMO

Quando descobriu que ele a traía com o seu melhor amigo, olhou-se no espelho circular do hall de entrada, lembrou-se de uma palavra desusada - émulo - e disse em crescendo: afinal, o que há de mais parecido com uma mulher é um homem.

segunda-feira, 1 de março de 2010

RELATIVIDADE MORAL

(imagem via Dicta&Contradicta)