Conferiram-se nomes, moradas, filiações; cuidou de saber-se da presuntiva troca de identidades, falsificação de documentos e... nada ; compararam-se fichas dentárias etcetera e tal e … nada: o morto de ontem era o morto de há um ano. Ora, o trabalho de quotio havia ensinado ao inspector Gouveia que os defuntos não andam por aí a morrer mortes várias, muito menos em defunções tão excruciantes como aquelas que tinham ocorrido ontem e há exactamente um ano.
Homem de assomos repentistas, o inspector Gouveia decide, por fim, a exumação do morto pretérito, para o comparar com o morto presente e jacente no Instituto de Medicina Legal. Fazem-se as diligências necessárias, obtém-se a autorização do juiz, ruma-se ao jardim do prior em dia aprazado, e, pá ante pá e com respeitos devidos ao domicílio e à condição do domiciliado, desentranha-se da terra a urna, quitando-a à voragem e voracidade da bicheza.
Rangem os metais ferruginosos do tampo do esquife. Um calafrio álgido perpassa na espinha ancilosada do inspector Gouveia. O morto escafedera-se, e ali, em vez das ossadas, uma folha de papel em vias de consumpção ameaça porfirizar-se. Gouveia baixa-se, desenrola-a num quase ritual de minúcias digitais, assesta o olhar coreográfico falsamente incurioso de detective ronhoso, e teria feito in situ uma leitura frustre, não fosse o desvelo do coveiro e do presidente da junta, que aproximavam as suas cabeças da dele numa intimidade de amorio.
Coloca o papel no bolso, lê a inscrição mors est latro hominis no lagedo granítico e, quando se prepara para o sapateio esconjurador no portão férreo a desempoeirar as botas do terrunho do cemitério, toca o telemóvel. O morto da véspera desaparecera do Instituto de Medicina Legal. Gouveia leva a mão ao entreforro do bolso, desenrola a folha como um rabi a Tora ou o mulah o Alcorão, e, com unção, lê alto como se fora um salmo ou uma surata - Morrer é não ser visto
Riqueza de texto, obrigado.
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