sábado, 31 de dezembro de 2011

Dicionário do Mofino 47

Ano Novo, s.m. intervalo de tempo do próximo ano em que a Terra vai dar uma volta completa em torno do meu umbigo sem dizer água vai; os vindouros 365 dias, 5 horas, 49 minutos e 12 segundos de inveja própria e prosperidade alheia; Bierce definia o ano como um período de trezentas e sessenta e cinco decepções; daqui se infere ser o Ano Novo um período de trezentas e sessenta e cinco velhas decepções; entra, pendularmente votivo, com juras de virtude dietética – fim do fumo, da beberrice e da comilança –, acaba, pendularmente luculiano, com ameaços de enfartamento e síndrome de intoxicação etílica; ano findo o qual e de novo, depois das consabidas venturas, aventuras e desventuras, acabaremos desesperançosamente exaustos; o ano em que o fracasso abre sempre a oportunidade de se renovar; o velho, efemeramente maquilhado como uma balzaquiana fanada.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

O Homem Visível

Num artigo publicado na Harper`s, The Visible Man – Ethics in a world without secrets, o filósofo Peter Singer inicia a reflexão ética sobre as consequências globais da Internet relembrando o panóptico de Bentham. Um edifício em forma de anel, no meio do qual havia um pátio com uma torre no centro. O anel divide-se em inúmeras celas, perfeitamente visíveis a partir da torre de vigia que, pan-opticamente, garante a absoluta visibilidade e transparência de quem se encontra no seu interior. Assim edificado, di-lo Foucault, o Panóptico permite aperfeiçoar o exercício do poder de diferentes formas: pode reduzir o número dos que o exercem, ao mesmo tempo que multiplica o número daqueles sobre os quais é exercido; exerce-se sem intervir, espontaneamente e sem ruído; vigia todas as dependências onde se quer manter o domínio e o controle; o controle é exercido mesmo quando não há realmente quem assista do outro lado. Augurava Bentham que tal arquitectura, aplicada às escolas, fábricas, presídios, hospitais e asilos criaria “a new scene of things”, reformando a moral, preservando a saúde, difundindo a instrução e promovendo o bem público. Perfeição do poder, segundo Foulcaut, absolutizado pela invisibilidade de um - movido pelo princípio da inspecção - e pela visibilidade de todos - desapossados pelo princípio da exposição - , a arquitectura anelar do Panóptico é, contudo, inadequada para figurar a complexidade reticular das relações de poder da Internet. O novo panóptico de Singer, o da era da Internet, preserva e supera em larga escala o princípio da inspecção e da exposição. Por um lado, o novo panopticismo da net e das novas tecnologias da informação, herdeiro ainda de Bentham, permite a recolecção ilimitada de informação individual pelos diferentes poderes, que pode funcionar como uma forma de desapossamento e privação (liberdade, reserva da vida privada). Por outro lado, a submissão intencional e voluntária a um campo de visibilidade constitui uma novidade, porque, citando Singer, we blog, we tweet, and post what we are doing, thinking, and feeling (…) we allow friends and contacts and even strangers, to know where we are at any time (…) we sign away our privacy in exchange for the conveniences of modern living, giving corporations access to information about our financial circumstances and our spending habits, which will then be used to target us for ads or to analyze our consumer habits. Por outro lado ainda, e perseguido uma ideia de transparência patente, por exemplo, na Wikileaks de Julian Assange, a Internet deu visibilidade às construções invisíveis do poder, aplicando-lhe reversamente o princípio de inspecção. Pergunta Singer: será a universalização do princípio da inspecção - perfeição do poder do Panóptico, segundo Foulcaut - a perfeição da democracia?

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

A ira é uma loucura breve?

Ira furor brevis est. Citar os antigos para comprender os coevos. Do Enragez-vous soixante-huitard - furor poético fugaz - à indignação social dos ocupas, passando pela compósita primavera árabe, o protesto contemporâneo parece ser pendular e efémero. Mas se a ira é uma loucura breve, como dizia Horácio, o que dizer dos seus efeitos?

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Christopher Hitchens (1949 - 2011) - Best Of

Hitchens sabia que ela viria, biblicamente e ao invés de deus, como ladrão na noite. Viria, ao contrário de deus - um caso milenar de absenteísmo -, que não veio ou virá, mas que assombra a história humana como um espectro. Deus não existe. Mas acaso exista, e porque "a religião envenena tudo" e deus existe, a polémica reboará qual trovão. Se Deus existe, é tempo da Russelliana questão: Senhor, porque tens dado tão poucos sinais da tua existência? Naturalmente, e porque como dizia outro nicotinómano, Gainsbourg, se existir, deus, será um fumador de habanos, a polémica continuará ad aeternum sob o bafor tabágico de uma nuvem de fumo.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Sobre o que há

O bosão de Higgs , the god particle de uns, the goddamn particle de outros, parece ser mais difícil de encontrar pela utensilagem experimental da física das partículas do que um deus, um gato preto inexistente num quarto escuro, o paroxístico ponto G. Outrora, à pergunta de Quine "What Is There?", respondia conceptualmente a Ontologia Filosófica a partir do cartesiano quarto aquecido. Ontem, não já no quarto, mas num túnel de 27 km de circunferência a 175 metros abaixo do nível do solo, tenteava-se pacientemente o bosão previsto pelo modelo Standard da microfísica e a resposta à questão ontológica de Quine. Não foi desta, mas todos sabemos que o ânimo longo, a longanimidade, é a virtude prudencial da ciência.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Léxico da Crise - "Ajustamento", Justamente

Bourdieu escreveu sobre as pessoas da sua geração que passaram sem dificuldade de um fatalismo marxista a um fatalismo neoliberal. Em ambos os casos, refere Bourdieu, o economicismo desresponsabiliza e desmobiliza, anulando o político, e impõe uma série de fins indiscutidos: competitividade, produtividade, crescimento máximo, austeridade, flexibilidade. Curiosos, segundo Bourdieu, são os jogos lexicais e duplos jogos verbais – caso do termo “reforma”, diria Bourdieu, caso do termo “ajustamento”, diremos nós – que, segundo uma lógica que é a de todas as revoluções conservadoras, apresentam uma restauração como se de uma revolução se tratasse. Justamente, um ajuste de contas.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Dicionário Do Mofino 46

Futebol, s. m. Desporto jogado com os pés, mãos e cabeças perdidas, por duas equipas de onze jogadores, três árbitros e uma horda. Invariavelmente, em paro, há uma bola a assistir; o filósofo Jean-Paul Sartre reflectiu sobre a singularidade desse objecto redondo em-si, que concita tantas paixões, alvitrou que num jogo de futebol tudo fica complicado na presença do adversário (o Outro, o inferno), e acabou por concluir que numa complicação tudo fica mais complicado na presença da filosofia; o poeta recifense João Cabral de Melo Neto definiu deste modo a anima da bola de futebol:

A bola não é inimiga
como o touro, numa corrida;
e embora seja um utensílio
caseiro e que não se usa sem risco,
não é o utensílio impessoal,
sempre manso, de gesto usual:
é um utensílio semivivo,
de reação própria como bicho,
e que, como bicho, é mister
(mais que bicho, como mulher)
usar com malícia e atenção
dando aos pés astúcia de mão.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

SeX Files - Até onde se pode ir?

No livro Até Onde Se Pode Ir, David Lodge biografou as vidas eróticas de um grupo de estudantes universitários católicos ingleses, nascidos no pós-guerra, para os quais a revolução sexual chegou tarde de mais. Nados, desmamados e criados na ortodoxia vaticanista do Catolicismo, rigorista e sexófoba, a via profana do sexo, pré-marital, marital, extra-marital, pós-marital, é uma via crucis de temores e ardores, dúvidas e aporias - o que se pode fazer? Quais os limites? Até onde se pode ir? Usando um anódino ardil dialógico intertextual, façamos responder a estas dúvidas uma personagem do Orgias, de Luís Fernando Veríssimo:

- Eu acho que na cama vale tudo, menos legumes. Já perdi a namorada porque disse que o meu limite era o pepino. E nos dávamos bem, ela também era do coral da Igreja.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Dicionário Do Mofino 45

Vegetarianismo, n.m. dieta alimentar do homo manducator, a quem não basta comer os vegetais que os animais já comeram; a crer no Julio Camba e seu sapidíssimo A Casa de Lúculo ou a Arte de Comer, o vegetarianismo seria a contrição do homem de pouco humor, e ainda menos suco gástrico, cujo fígado, funcionando mal, segrega virtude em vez de bílis; filosoficamente, Pitágoras, que se alimentava de pão e mel, legumes, excepto de favas (Dieta Pitagória), teria sido precursor do vegetarianismo, porque, acreditando na doutrina da metempsicose, temia esmoer algum amigo finado, o que lhe fazia, não raras vezes, minguar o apetite para os inimigos.