sábado, 27 de fevereiro de 2010

Al-Karim ("o Nobre")



O teólogo Hans Küng, na sua obra Islam: Past, Present and Future, assevera que o estado do conhecimento do Islão entre muitos dos seus contemporâneos é de “nível medieval”. Embora imprecisa, a adjectivação confessa a ignorância cristã do Islão, que é também a ignorância da sua herança textual matricial – o Corão.

« O primeiro monumento da língua árabe contém, segundo uma compilação do século XIII, 323015 letras, 77439 palavras, mais de 6000 versículos e 114 suratas. Um livro de modesta extensão, comparado aos mastodontes de outros monoteísmos. Mas um livro de difícil acesso, que passa de versículos de beleza selvagem a declarações longas e fastidiosas. É necessário dizer que foi feito para ser recitado, e que neste caso – dizem aqueles que são capazes – possui uma força retórica excepcional. Os outros aproveitarão em pedir aos filósofos-barqueiros que os façam passar da margem para o texto.»

Philosophie Magazine

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

GOD IS NOT GREAT - O REGRESSO DO CRÍTICO VOLTAIRIANO

Christopher Hitchens

Ele esteve no meio de nós .
Em relação aos mots d'esprit sobre o seu pregresso esquerdismo soixante-huitard, podemos citar Pascal Bruckner e escrever: «Sempre detestei os apóstatas desse período: eles querem-nos envergonhar por não termos partilhado as suas ilusões, e também por não as termos perdido.»
Sobre a derrisão voltairiana da sua crítica à religião, que transformou GOD IS NOT GREAT-The Case Against Religion no equivalente hodierno do Porque não sou Cristão (em alguns aspectos), de Bertrand Russell,escrevemos: não, não, Deus não é um caso de absenteísmo! God is not Great é um livro desassossegador sobre a demasiada omnipresença de Deus.
AFFINITY


« Sentimos afinidade com certo pensador porque concordamos com ele; ou porque nos mostra o que já estávamos a pensar; ou porque nos mostra de forma mais articulada o que já estávamos a pensar; ou porque nos mostra o que estávamos na iminência de pensar; ou o que podíamos ter pensado mais tarde ou mais cedo; ou o que podíamos ter pensado muito mais tarde se não o estivéssemos agora a ler; ou o que provavelmente podíamos ter sido levados a pensar mas não teríamos pensado se não o tivéssemos lido agora; ou o que podíamos ter gostado de pensar mas nunca teríamos podido pensar se não o tivéssemos lido agora.»

Lydia Davies – The collected Stories

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

NA PONTA DA LÍNGUA



A linguagem, é sabido, foi criada para cortejar as mulheres e para nos enganarmos alegremente uns aos outros. Esta teoria é conhecida dos portugas, que fazem dela um uso empírico proficiente e loquaz. Ter tudo na ponta da língua é o píncaro da argúcia a que ambicionam os nativos, que a musculam e aceram sem contudo dar com ela nos dentes. Não cuidando dos equívocos semântico-eróticos da expressão ter tudo na ponta da língua, fixemo-nos na tese e no argumentário que proponho defender. Eis a tese: a causa prima da lentidão no crescimento do país radica no destreino das virtudes ilusivas e trafulhas que os portugueses exibem profusamente, mas que não podem exercitar no contexto europeu porque não falam inglês. É verdade que da nossa língua se vê o mar, como dizia o Vergílio Ferreira, mas dela não se lobrigam os mercados financeiros nem se divisa o Adamastor da economia global, do ciberespaço e da cibercultura.
Os limites do nosso mundo são sempre os limites da nossa linguagem (Pace, Wittgenstein!), e é por isso que arremedamos a anglicização generalizada para não morrermos à míngua da globalização e do progresso económico. De cada vez que uso franchising, o meu mundo aumenta dez centímetros; se for leasing, factoring ou open market, infla qual balão rumo ao éter. O perigo do embuste persiste sempre. É por isso que quando falo com vendedores de produtos de informática, economistas, bancários - que falam uma espécie de língua bífida alienígena -, e ouço downstream, spread, browser, misturadas em amálgama com o idioma indígena, fico em estado catatónico, saco do meu Technical Dictionary, peço um sofá e dois cafés duplos e tenteio as páginas com a esperança ténue de encontrar o significado e não cair na esparrela.
É por tudo isto que devemos pedir encarecidamente a quem de direito. Engenheiro Sócrates, já que do portunhol não pode, liberte-nos do hibridismo do portuglês! Ensine-nos só o Inglês! Os portugueses estão confusos com as misturas de línguas; a antiga mestria na arte de bem ludibriar falando está em desuso porque, falando mal várias, não atinamos em nenhuma com mestria. Ponha-nos, ex abrupto e com um símplice simplex linguístico, na rota do progresso e da nossa vocação unilingue, e verá subir o PIB o Rendimento Per Capita, os resultados do PISA e demais índices de felicidade.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

"AS VIRGENS QUE FAZEM MUITO CASO DO TEMPO"

Foi estranho. Quando o médico lhe disse que tinha uma doença grave, lembrou-se do que respondera ao namorado há trinta anos atrás: ainda não estou preparada. Também na altura soubera de imediato que algo estava prestes a consumar-se.
Às vezes somos como as virgens que fazem muito caso do tempo.
Mas o meu tio, assíduo de Thoreau e homem de crenças pregressas, achava muito mais grave ser como os virgens que fazem muito caso do tempo.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

γνῶθι σεαυτόν (2)
A MAIÊUTICA DE SÓCRATES E A IRONIA DE CRISÓSTOMO



A frequentar um curso intitulado "Filosofia e Autoconhecimento", e depois de matutar na injunção socrática “conhece-te a ti próprio", o Crisóstomo lembrou-se das escutas e exclamou judicioso:
- A senhora professora vai-me desculpar, mas isso não é senão um convite à devassa da vida privada.
SOFISMA RODOVIÁRIO NACIONAL ("FALÁCIA MÁRIO LINO")



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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

γνῶθι σεαυτόν (1)
A MAIÊUTICA DE SÓCRATES E A IRONIA DE VERÍSSIMO



"Conhece-te a ti mesmo, mas não fique íntimo"

Luiz Fernando Veríssimo

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

LEWIS CARROLL, ALICE, LÓGICA E A RAINHA DE INGLATERRA



Charles Lutwidge Dogson, nasceu em Daresbury - Cheshire (1832), e morreu em 1898. Foi matemático, lógico, fotógrafo e romancista. O seu interesse pela lógica matemática e pelos jogos lógicos (“Não há homens mais inteligentes do que aqueles que são capazes de inventar jogos”, dizia Leibniz), levou-o a publicar diversos livros sobre lógica, entre os quais se destacam The Game of Logic (1887) e Symbolic Logic (1896). Ficou famoso quando publicou Alice in Wonderland (1865). C. Dodgson adopta então o pseudónimo de Lewis Carroll para as obras literárias e reserva o seu verdadeiro nome para as obras científicas. Depois do sucesso de Alice in Wonderland, escreveu Through de Looking Glass (1871), que alcançou tanto sucesso como o primeiro. Seguiram-se-lhe: The Hunting of Snark (1876) uma poesia plena de nonsense na qual Lewis revela o gosto pelo absurdo e pelo paradoxo (refira-se que, em 1895, publicou na revista "Mind" um artigo sobre um paradoxo que viria a ser conhecido como "O Paradoxo de Carroll" - What the Tortoise said to Achilles) e Sylvie and Bruno (1889).
Conta-se que a Rainha Vitória, tendo gostado bastante dos livros Alice e Alice do Outro Lado do Espelho, solicitou a sua presença e perguntou-lhe se escrevera outros livros. Depois da resposta afirmativa a rainha terá dito: Quero ler todos! Mande-me um exemplar de cada um deles. No dia seguinte chegaram ao Palácio de Buckingham todos os tratados de Matemática escritos até essa altura por Charles Lutwidge Dogson, professor de Matemática…
Nos livros sobre Alice é manifesto o gosto de Lewis Carroll pelo absurdo, pelo raciocínio lógico e pela equivocidade da linguagem, que serve, todos o sabemos, para cortejar as mulheres e para nos enganarmos alegremente uns aos outros.


- Eu digo o que quero dizer – replicou prontamente Alice – Pelo menos quero dizer o que digo ... É a mesma coisa, claro!
- Não é nada a mesma coisa! – respondeu o Chapeleiro. Se fosse a mesma coisa, podias dizer que "eu vejo o que como" é a mesma coisa que "eu como o que vejo".
- E podia afirmar – juntou a lebre de Março – que ''gosto daquilo que tenho" é a mesma coisa que "tenho aquilo de que gosto"...


Toma mais um pouco de chá – disse a lebre de Março para Alice, e com muita convicção.
- Se eu ainda não tomei nenhum chá... – respondeu Alice ofendida – Por isso como posso tomar mais?
- O que tu queres dizer é que não podes tomar menos - afirmou o Chapeleiro - mas podes muito bem tomar mais do que nenhum.


Lewis Carroll - Alice in Wonderland

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

CIÊNCIA E RELIGIÃO



São frequentes os Encontros e Colóquios sobre Ciência e Religião/Teologia, Fé e Razão, que aspiram a uma espécie de ecumenismo cognitivo vicariante: ambas ambicionariam, bona fide, conhecer o desconhecido, e cada uma supriria, dialecticamente, as limitações da outra. Invocam-se então intenções e desideratos afins, convocam-se de permeio religiosos com produção científica (Mengel, Lemaître) e, conversamente,figuras da história da ciência com consabido chamamento religioso (Newton, invariavelmente), ou tão-somente tentadas por um teísmo indefinido e lacunar (Einstein, porque “Deus não joga aos dados” e os seus ministros também não). Depois, é claro, zurze-se com ligeireza o trabalho crítico dos "New Atheists" Richard Dawkins, Daniel Dennett, Sam Harris, Christopher Hitchens, como se fossem autores de Sumas Ateológicas e cultores de uma espécie de Dogmática Ateia, - o que é, naturalmente, um refalsado simplismo que tresleu os textos, mas que tem passado por tópico argumentativo judicioso.
Como por aqui se prefere a companhia daqueles que procuram a verdade à daqueles que já a encontraram, eis dois autores com relações avisadas com a religião e que merecem ser relidos.

« In all modern history, interference with science in the supposed interest of religion, no matter how conscientious such interference may have been, has resulted in the direst evils both to religion and science, and invariably; and, on the other hand, all untrammeled scientific investigation, no matter how dangerous to religion some of its stages may have seemed for the time to be, has invariably resulted in the highest good both of religion and science.»

A. D. White - A History of the Warfare of Science with Theology in Christendom


« O esforço pra reconciliar a ciência e a religião é quase sempre feito, não por teólogos, mas por cientistas, incapazes de renunciar totalmente à piedade que beberam com o leite materno. Os teólogos,sem um tal dualismo a baralhar-lhes o raciocínio, têm clarividência suficiente para compreender que ambas são implacável e eternamente antagónicas, e que qualquer esforço para as meter dentro do mesmo saco terminará com uma delas engolindo a outra.»

H.L. Menken - Minority Report

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

O PEDAGOGO 2



"O efeito que a paternidade pode ter sobre o intelecto de um adulto é absolutamente devastador.”
Diogo Mainardi

Rousseau sabia-o e apressou-se a enviar a sua prole de bons selvagens para um orfanato a distância prudente. Platão recomendava que a educação fosse uma responsabilidade pública da Pólis e os gregos criaram mil e um expedientes para libertar os adultos da coexistência pouco filosófica e racional com os juvenis. O pedagogo - escravo incumbido da penosa missão de levar a criança à escola - é a figura da atemporal servidão a que as crianças submetem os adultos e para a qual não se prefigura nenhuma salvífica emancipação (a pedagogia obriga-se hoje a ocupação similar: em vez de levá-las à escola, tenta mantê-las lá).
O que fazer? Cumprir o programa de ansiedade e angústias, sem apelo nem agravo, e entrar no desvario hiperactivo da parentalidade quotidiana.
Eis o que vos espera: a escola, os tempos livres, o tempo será insanamente ocupado em “actividades” com agenda de executivo, para que nenhum presumido talento deixe de se manifestar em toda a sua glória; a natação, o ballet, o inglês, a informática, a música transformarão os horários das crianças e dos pais (por “arrastamento”, literalmente) em horários de executivos workaolics, cheios de rabugens, conflitos, ambições megalómanas, frustrações, ansiolíticos. A ilusão meritocrática, o alpinismo social e o rankismo agravarão a provação: as alegrias e tristezas da excelência/mediania escolar serão percepcionadas de forma desfocada, levando os pais a diagnósticos divertidos sobre os rebentos - a idiotia ou a genialidade,não raras vezes minudentemente aferida pelo olho clínico dos Psis.
Lutar para que o seu rebento trepe ao cume da pirâmide social - sem perder o equilíbrio e a sanidade mental - é a tarefa hercúlea dos pais para quem, não raras vezes, a existência se concentra em fazer do filho(a) um nababozinho da clínica ou das leis.
Não procurem mais. A felicidade existe. Há quem assevere que a entrevê pelo canudo excelente da meritocracia e do sucesso, que é hoje a derradeira expressão - neurótica e narcísica - do “ideal” numa sociedade sem “ideais”.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

"CHAMAR A TÉCNICA À RAZÃO" 2




“Dois em um”, “ três em um”, “quatro em um”. A hodierna monomania em relação à multifuncionalidade dos gadgets electrónicos (e não só) é quase uma teologia mística sobre a omnipotência dos objectos. Tem as suas eucaristias e celebrantes, que renovam amiúde o seu valor salvífico e prometeico.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

"CHAMAR A TÉCNICA À RAZÃO" 1



« Pela primeira vez na história da humanidade estão disponíveis em massa objectos técnicos hiperpotentes, dos quais não usamos todas as potencialidades. As viaturas de série podem atingir os 180 quilómetros por hora – mas não podemos ultrapassar os 130; (…) as máquinas fotográficas permitem fotografar movimentos ultra-rápidos e ângulos acrobáticos – mas não servem senão para tirar algumas fotografias às crianças na praia todos os anos; os programas dos nossos computadores pessoais têm funcionalidades que só usamos parcialmente – a começar pelos processamentos de texto.
Esta impressão de impotência que muitos sentem perante a técnica não será motivada pela hiperpotência inútil dos seus objectos? »

Jean-Marc Lévy- Leblond - Impasciences