sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Dicionário do Mofino 63/πράξις

Praxe, s.f. Costumes e rituais usados por estudantes mais velhos de uma universidade, com o intuito de integrar devagarinho os mais novos no meio académico; tirocínio que demostra ser mais fácil fazer entrar uma besta dócil - o caloiro - pelo buraco de uma latrina, do que fazer fazer sair uma besta indócil – o dux veteranorum – pelos portões da faculdade; segundo Millôr, a Universidade é o local onde a ignorância é levada às últimas consequências, e a praxe dá para dar uma olhada.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Diário dos Perplexos/Fresco, esperto, entrando mais na alma do que muito livro santo

Há um novelista enófilo britânico, Lawrence Osborne, que tem uns dichotes interessantes sobre a crendice ignara que é dar 1ooo euros por uma garrafa. Em primeiro lugar, diz o autor do The Accidental Connoisseur, o que define a posição de um vinho nas revistas da especialidade é um misto de marketing e, às vezes, qualidade. Como diz Osborne, há vinhos tão bons como o Lafite por aí, mas nem todos têm a família Rothschild por trás. Em segundo lugar, o acto de superstição que é comprar uma garrafa por esse preço demonstra que os ricos gostam que lhes digam do que eles devem gostar, e esquecem que, garantido um mínimo denominador comum (fermentação minudente, um terroir interessante, bons barris de madeiras nobres), só há dois tipos de vinhos: aquele dos quais gostamos e são para nós criaturas joviais, e os outros. Hoje, por acaso, até bebi um supimpa: fresco, esperto, entrando mais na alma do que muito livro santo, como diria o Eça.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Prodígios e vertigens da analogia

Ora aqui estão os prodígios e vertigens da analogia! Comparar a Estrada da Beira com a beira da estrada e, num fósforo, desarmar retoricamente o interlocutor, foi o que fez um administrador da Lusófona que, depois de fazer profissão de fé no ordálio e via crucis da praxe, insinua de sorrate a analogia - a praxe é como a condução -, e remata com um entimema - se a praxe é como a condução, não é por morrerem pessoas nas estradas que se deve proibir a condução. E apoucam as Humanidades os cagaciência do Ministério da Educação! Não fossem umas luzinhas de Retórica e o rethor amochava.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Prof. /A lenta extinção do homo docens (o que lê e dá a ler)

Já aqui escrevemos sobre a suspeita Borgeana de que a espécie humana estaria prestes a extinguir-se e que a Biblioteca perduraria iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta. E continua a ser verdade que a descrição Borgeana da Biblioteca arrepia o couro cabeludo dos professores bibliotecários, que a concebem prestimosa e funcional como um canivete suíço, convivial e versátil como uma sala de estar.
Nas escolas, as bibliotecas escolares estão atravancadas de computadores e minguadas de livros e leitores - alunos e professores que não se envergonham de dizer que não lêem, entregues que estão ao infognosticismo das Novas Tecnologias da Informação e da Comunicação. Em relação a estes últimos, aliás, assevera-me um amigo biólogo, especialista em espécies autóctones em perigo, que o homo docens, comummente conhecido como professor, se encontra em vias de extinção. Por incapacidade adaptativa às novas exigências ambientais e profissionais, o professor, o verdadeiro professor, isto é, aquele que estuda, lê e ensina, irá, num fósforo, transformar-se numa raridade zoológica. Os seus tropismos adaptativos (estudar, ler, ensinar) já não são eficazes, e é vê-lo agora a soçobrar (também de tédio) nas intermináveis reuniões dos conselhos (pedagógico, de turma, de directores de turma, de departamento, de grupo), que se transformaram numa morosa logoterapia grupal ou numa burocracia gestionária interminável. Quando o vemos a arquejar no delírio burocrático dos projectos, planificações, formações, avaliações, e muitas outras ninhices pedagógico-didácticas, percebemos que o professor já não é o leitor que dá a ler, e que a escola já não assenta nesse tabu: o livro. Se perdê-lo é deixar entrar os bárbaros dentro da cidade, aqui-d'el-rei que na escola já entraram.

domingo, 26 de janeiro de 2014

Diário dos perplexos/Mais vale tarde do que mais tarde

A história repete-se. Em 2003, a convite da revista The Atlantic Monthly, Bernard-Henri Lévy refez a viagem de Alexis de Tocqueville na América, de que resultou o road book American Vertigo - inçado, aliás, dos estereótipos useiros e vezeiros: Freaks, Fatties, Fanatics. Em Fort Worth, Bernard-Henri Lévy visita um gun show e tem uma visão perturbadora: jovens, velhos, famílias, apreciam e compram armas variegadas, modernas e antigas. 
Algumas horas depois da tragédia de Newtown, o documentarista Michael Moore twittou: Too soon to speak out about a gun-crazy nation? No, too late. Não sei se Michael Moore comentou o recente tiroteio em Maryland, mas a cada nova vítima a doutrina mantém-se: mais vale tarde do que mais tarde.

sábado, 25 de janeiro de 2014

História natural dos ricos e dos pobres segundo Henrique Monteiro

Um relatório de uma ONG chocou o mundo e Henrique Monteiro: as 85 pessoas mais ricas do planeta têm os mesmos recursos do que a metade mais pobre da população mundial. Depois do estupor moral inicial, Henrique Monteiro lembrou-se de algumas das pessoas mais ricas do mundo, Bill Gates e Warren Buffett, do seu fervor caritativo e filantrópico, e discorre: se eles não existissem, não tivessem tido ideias e lances geniais, então o mundo seria mais pobre, logo o mal não está em haver ricos, mas em haver pobres, logo a igualdade que se exige nas sociedades é a de oportunidades, de direitos e de dignidade, não a de recursos ou riqueza. O argumento de Henrique Monteiro tem a desenvoltura símplice e temerária de uma reductio ad absurdum - a falácia que mas excita a lógica funicular de um doido -, como se fosse crível que sem um módico de partição justa da riqueza e de recursos houvesse um minimum de igualdade de oportunidades, de direitos e dignidade, mas o mais importante do texto de Henrique Monteiro é o subtexto que nele, à sorrelfa, perpassa: a filantropia e a caridade, como o amor cristão, a cobrir a multidão dos pecados do capitalismo global e a substituir-se à justiça (não dês por caridade o que é devido por justiça); a genialidade voluntariosa e industriosa dos ricos, contraposta à presuntiva autocomiseração fatídica dos pobres; enfoque monológico na criação da riqueza, nem uma palavra para a lógica da sua distribuição. O que impressiona no subtexto de Henrique Monteiro sobre a pobreza e a riqueza, sempre naturalizadas e pensadas a partir da visão microscópica do indivíduo, é não haver uma palavra, quer para os complexos sociais e económicos que lhes subjazem, quer para a política como forma de rever o presente e antecipar o futuro. A menos que, na sua lógica férrea, não exista essa coisa chamada sociedade.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Freud & Maria Luís

Longe de mim apodar a etérea Maria Luis Albuquerque como discípula freudulenta do pai da psicanálise, mas alto e pára o baile: basta de tanto apelo ao princípio da realidade. Se não podemos voltar à prosperidade pregressa, ao que era, porque o que era não existe - e desconfio que nunca existiu para a maioria dos portugueses que antes da crise viviam com os salários mais miseráveis da União Europeia -, resta-nos o futuro. Mas o futuro real da ministra das finanças é o futuro das revoluções conservadoras - apresenta uma restauração como se de uma revolução se tratasse. E aí está a realidade da restauração, o projecto de base do FMI, a famosa fórmula conhecida como consenso de Washington, avocada também pela troika e instâncias europeias: abandono dos programas sociais keynesianos, adopção de políticas monetaristas, redução ao mínimo das despesas sociais, privatização da educação e do sistema de saúde públicos, redução da dívida pública.
Retornemos, pois, ao princípio da realidade, a Freud e, já agora, ao negregado psicobolche Slavoj Žižek : Como entender a dimensão de superego com que o FMI trata seus Estados clientes – enquanto os repreende e pune pelas dívidas não pagas, simultaneamente oferece novos empréstimos, que todos sabem que não poderão ser pagos, sugando-os então para mais fundo no círculo vicioso de dívida gerando dívidas? A ministra das finanças repreende, pune, mas o aceno à realidade é só um ameaço irreal. A realidade é pouco real e parece resultar do conflito das suas interpretações. Ela sabe que a realidade é uma batalha a travar.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Diário dos perplexos/Moral da estória: não há Panteão que não dê em pandemónio.

Os imortais, se imortais houver, não são vestais que façam muito caso do tempo, de modo que levá-los a destempo para o Panteão é cuidado dos mortais com sobejo dele. Depois de Eusébio, só nesta semana foram alvitrados mais dois nomes e já se entrevêem mais ameaços de deificações. Xenofonte, que zurziu abonde no Panteão dos gregos, escreveu que os etíopes diziam que os seus deuses eram de pele escura e possuíam o nariz achatado, os trácios que os seus seriam loiros e de olhos azuis, e, acaso vivesse agora, diria Xenofonte que os dos lusos são brancos e pretos, marcam golos, cantam fados e baladas, fazem revoluções (mas não das orbes celestes). Moral da estória: não há Panteão que não dê em pandemónio.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Diário dos Perplexos/A parentalidade hiperactiva

O efeito que a paternidade pode ter sobre o intelecto de um adulto pode ser, escreveu-o alguém, absolutamente devastador. Rousseau sabia-o e apressou-se a enviar a sua prole de bons selvagens para um orfanato a distância prudente. Platão recomendava que a educação fosse uma responsabilidade pública da Pólis, e os gregos criaram mil e um expedientes para libertar os adultos da coexistência pouco filosófica e racional com os juvenis. O pedagogo - escravo incumbido da penosa missão de levar a criança à escola - é a figura da atemporal servidão a que as crianças submetem os adultos e para a qual não se prefigura nenhuma salvífica emancipação (a pedagogia obriga-se hoje a ocupação similar: em vez de levá-las à escola, tenta mantê-las lá).O que fazer? Cumprir o programa de ansiedade e angústias, sem apelo nem agravo, e entrar no desvario hiperactivo da parentalidade quotidiana. Eis o que vos espera: a escola, os tempos livres, o tempo será insanamente ocupado em actividades com agenda de executivo, para que nenhum presumido talento deixe de se manifestar em toda a sua glória; a natação, o ballet, o inglês, a informática, a música transformarão os horários das crianças e dos pais em horários de executivos workaolics, cheios de rabugens, conflitos, ambições megalómanas, frustrações, ansiolíticos. A ilusão meritocrática, o alpinismo social e o rankismo agravarão a provação: as alegrias e tristezas da excelência/mediania escolar serão percepcionadas de forma desfocada, levando os pais a diagnósticos divertidos sobre os rebentos - a idiotia ou a genialidade, não raras vezes minudentemente aferida pelo olho clínico dos Psis. Lutar para que o seu rebento trepe ao cume da pirâmide social - sem perder o equilíbrio e a sanidade mental - é a tarefa hercúlea dos pais para quem, não raras vezes, a existência se concentra em fazer do filho(a) um nababozinho da clínica ou das leis. Não procurem mais. A felicidade existe. Há quem assevere que a entrevê pelo canudo excelente da meritocracia e do sucesso, que é hoje a derradeira expressão, neurótica e narcísica, do ideal numa sociedade sem ideais.

A democracia precisa das humanidades?

A democracia precisa das humanidades? Ora aí está uma boa pergunta sobre a qual a filósofa Martha Nussbaum escreveu um livro - Not For Profit: Why Democracy Needs Humanities – que Nuno Crato e Pires de Lima deviam ler. Nele a filósofa norte-americana pleiteia a causa das Humanidades e reclama a sua presença nos sistemas educativos das democracias. Nussbaum convoca o apólogo Socrático uma vida não questionada não vale a pena ser vivida, salientando que só as Artes e Humanidades permitem a avaliação dos dados históricos, a comparação de diferentes concepções de justiça, a avaliação das grandes religiões do mundo, enfim, um pensamento crítico-argumentativo virtuoso, virtude maior das democracias. Fernando de Bulhões, vulgo santo António, escreveu que não é sábio quem sabe mais do que é preciso, mas o saber sobre o que é preciso aprender e ensinar carece de uma reflexão filosófica não trivial, para além das orientações políticas liberais do sistema de ensino das democracias (entre as quais o infognosticismo e a lengalenga da ligação às empresas são exemplos exemplo risíveis), que menorizam as Letras, minguam os já depauperados orçamentos dos departamentos de Artes e Humanidades, consideram supérfluos e ociosos todos os saberes que não se concretizem numa estrita techné.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

O prazer é momentâneo, a posição é ridícula...

A definição é visual e fescenina, mas parece-me clara e tempestiva. Javier Marias definiu a fidelidade como a constância e a exclusividade com que um determinado sexo penetra ou é penetrado por outro igualmente determinado, ou se abstém de ser penetrado ou de penetrar noutros
A tradição judaico – cristã jungiu sexo e casamento tão estreitamente, que o primeiro era definido pelo segundo. Tínhamos então a sequente e agónica progressão erótica: sexo pré-marital, sexo marital, sexo extra-marital. Tropeçávamos no primeiro, quedávamo-nos no segundo, resvalávamos para o terceiro. Mas só no último, descobríamos a sageza das palavras de Lord Chesterfield, escritas em missiva célebre endossada ao seu filho: o prazer é momentâneo, a posição é ridícula, e o preço a pagar incomportável. 

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Os nebulosos Gaspar, Pereira e Arnaut e a Nebulosa da Governação Global

Recentemente, o professor José Manuel Pureza apoucava o interesse em saber se as idas de Vítor Gaspar para o FMI, de Álvaro Santos Pereira para a OCDE e de José Luís Arnaut para o Goldman Sachs se deveram à influência do governo e, citando Robert Fox, interpretava-as como expressão da nebulosa da governação global, feita de relações informais entre mercados, governos e instituições internacionais que governam de facto os países e as suas populações. Nem mais! Engana-se quem pensa que a globalização é um processo autotélico gerado por um capitalismo desregulamentado de comércio e mercados livres. Como escreveu Antonio Negri no Multidão – Guerra e Democracia na Era do Império, basta uma breve visita às neves de Davos para pormos de parte esta ideia de desregulação do capitalismo, pois podemos aí ver claramente a necessidade que os dirigentes das maiores companhias têm de negociar e cooperar com os líderes políticos dos estados-nação dominantes e com os burocratas das instituições económicas supranacionais.
Diz-nos também Negri que a grande lição de Davos é uma lição antiga: não há mercado económico sem ordem e regulação políticas, e aqueles que advogam a libertação dos mercados ou do comércio do controlo do estado não reclamam, na realidade, menos controlo político, mas simplesmente uma espécie diferente de controlo político. É também curioso observar como as elites empresariais, burocráticas e políticas que se reúnem em Davos para haurir os ares frescos da montanha não necessitam de apresentações recíprocas, pois os investigadores das estruturas institucionais das empresas e dos serviços do Estado observaram como umas e outras se desenvolveram paralelamente ao longo de todo o século XX, ao mesmo tempo que as empresas se inseriam cada vez mais solidamente nas instituições públicas. Não é pois de admirar, continua Negri, que os mesmos poucos indivíduos transitem tantas vezes e com tão pouco esforço dos gabinetes governamentais mais importantes para as salas dos conselhos de administração das empresas ou vice-versa, no decurso da sua carreira
Se assim for, e a hipótese de uma nebulosa da governação global, nada resserenadora, for real, o que pensar agora, sabendo que dela fazem parte os nebulosos Vítor Gaspar, Álvaro Santos Pereira e o José Luís Arnaut? 

domingo, 12 de janeiro de 2014

Biblioterapia/The Feeling Good Handbook ou Do Inconveniente de Ter Nascido?

As virtudes farmacopeicas da literatura são conhecidas. Os feitos colaterais também. A proliferação micológica de literatura self-help nas livrarias teria de dar nisto. Mas, em verdade vos digo, ler Overcoming Depression, Mind Over Mood, ou mesmo The Feeling Good Handbook, não é tão eficaz para combater a depressão como ler Do Inconveniente de Ter Nascido, de Cioran. É o phármakon platónico em acção, o veneno, o remédio, ou, sem filosofices, o que arde cura.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

A televisão não sabe administrar sabiamente a tristeza

A televisão não sabe administrar sabiamente a tristeza e as reportagens sobre eventos infaustos não têm sabedoria trágica. Nada de mais verdadeiro. Sobeja a despudorada fancaria emocional, o pathos kitsch, o tal que gera o pejo próprio no despudor alheio quando o jornalista pergunta a um passante como se sente agora que o rei morreu, como se cumpliciássemos com ele por dele sermos espectadores. Mas quando o passante responde, di-lo-ia o Kundera da Insustentável Leveza do Ser, o Kitsch é estuante e comovente como qualquer outra fraqueza humana.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Diário dos perplexos/O candidatum e o virgo postiço


A propósito da crise da credibilidade política, e num capítulo epigrafado com uma citação de Juvenal - Difficile est satyram non scribere (É difícil não escrever uma sátira) -, o filósofo alemão Peter Sloterdijk rememora, no livro Mobilização Infinita, uma singular tradição política romana. Sempre que um cidadão se apresentava como candidato a um cargo público, desfilava pela cidade usando uma toga imaculadamente branca, asseverando assim aos seus concidadãos a condição de «candidus», cândido, isto é, candidatum. O que queriam os candidatos dar a saber? Segundo Sloterdijk, os Candidati desejavam dar a saber que estavam dispostos a perder a sua inocência; eram «as noivas» do princípio da realidade, cujo potencial de desfloração é lendário desde o tempo dos Romanos. Ficamos à espera, mas o candidato só lá vai se a Brígida Vaz arranjar um vicentino virgo postiço.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Fazer viver e deixar morrer

No Nascimento da Biopolítica, e indagando sobre o modo como a vida é reificada e erigida em facto político adentro da teoria clássica da soberania, Michel Foucault descreveu como, no século XIX, o poder soberano de fazer morrer e deixar viver se transmudou no poder de fazer viver e deixar morrer: O poder disciplinar, que já em fins do século XVII se centrava no corpo individual (organizando, esquadrinhando, vigiando), possibilitou à biopolítica implantar-se numa outra escala. Tomando a vida como elemento político por excelência, na biopolítica perpassa ainda o antigo poder soberano. Com os investimentos de poder centrados no homem-espécie, a vida passou a ser administrada e regrada pelo Estado. Em nome da protecção das condições de vida da população, preserva-se a vida de uns, enquanto se autoriza a morte de outros tantos. Se o poder soberano já expunha a vida humana individual à morte, ainda que de maneira limitada, o biopoder expõe a vida de populações e grupos inteiros. 
Posto isto, e quando em Portugal, de sorrate, se insinua uma política de racionamento dos medicamentos e dos meios auxiliares de diagnóstico, notícias como esta e esta não são notícias tremendistas. Nada de ilusões: como já afirmara Foucault em La Naissance de la Médicine Sociale (1974), o corpo é uma realidade biopolítica, a medicina é uma estratégia biopolítica, o poder é o poder de fazer viver e deixar morrer.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Suspenso no ar como uma noiva de Chagall


Suspenso no ar como uma noiva de Chagall, escreveu Foster Wallace referindo-se a Michael Jordan. Mas podia ser Federer, em paro como no Discóbolo de Míron, no ténis - sobre o qual Wallace escreveu com furor poético -, a fazer um passing shot. Apesar do obstinado niilismo que domina a obra de Wallace, Hubert Dreyfus e Sean Dorrance Kelly, autores de Um Mundo Iluminado, julgam entrever nos seus textos sobre os momentos sagrados do desporto uma linha que contraria este niilismo - os únicos momentos em que o corpo é corpo inerme, furtando-se ao solo em sobrepairo.

domingo, 5 de janeiro de 2014

Internacional Citacionismo/Gol

GOL

A esfera desce
do espaço
         veloz
ele a apara
no peito
e a para
no ar
         depois
como o joelho
a dispõe à meia altura
onde
iluminada
a esfera
         espera
o chute que
         num relâmpago
a dispara
         na direção
         do nosso
         coração.


      Ferreira Gullar

sábado, 4 de janeiro de 2014

Dicionário do Mofino 62/ A palavrada do ano

Irrevogável, adj. O que não torna atrás, mas dá a volta; o que não se pode anular, mas concede a felicidade do esquecimento das coisas irreparáveis; o chamo de Deus é eterno e irrevogável, escreveu Paulo, o apóstolo, mas as proclamações dos homens tem a duração fruste de um ámen-jesus, escreveu Paulo, o ministro. 

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Diário dos Perplexos/Metaforologia odiosa do comunismo

Um dia destes fará-se-á a metaforologia odiosa da retórica anti-comunista. Haverá, certamente, um capítulo intitulado “Metáforas dietéticas: da paidofagia à necrofagia”. Bom proveito! 

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Internacional Citacionismo/Munro para ambientalistas

Os meteoros não estão para bucolismos. Os neorrurais que, acossados pelo desemprego e provações da vida citadina, quiseram mudar de vida e provar as amenidades dulcíssimas do campo e da natureza estão bem arranjados. Na Beira há campos para lavrar e estrumar, vinhedos para podar, mas a meteorologia está inclemente. Aí, a Natureza persiste na sua natureza e arremete agreste e indócil. É tempo, pois, para citar Munro: People who openly admired nature – or who even went so far as to use that word, Nature – were often taken to be slightly soft in the head.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Dicionário do Mofino/Ano Novo

Ano Novo, s.m. Os vindouros trezentos e sessenta e dias, cinco horas, quarenta e nove minutos e doze segundos de inveja própria e prosperidade alheia; entra, jocosamente votivo, com juras de temperança – fim do fumo, da beberrice e da comilança –, acaba luculiano, enfartado em comédias e bebédias; os trabalhos e os dias que invariavelmente me convencem do inconveniente de ter nascido; o ano em que o fracasso tem a oportunidade de se renovar; o velho, maquilhado como uma balzaquiana fanada; um ovo gorado, chocado com a alegria de uma pata choca.