segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Dicionário do Mofino 47


Ano Novo, s.m. Período de tempo que começa bem, com efusões, libações, promessas, votos, e depois de 364 dias de tédio acaba melhor com mais libações, promessas e votos; os vindouros 365 dias, 5 horas, 49 minutos e 12 segundos de inveja própria e prosperidade alheia; Bierce definia o ano como um período de trezentas e sessenta e cinco decepções; daqui se cogita ser o Ano Novo um período de trezentas e sessenta e cinco velhas decepções; entra, pendularmente votivo, com juras de virtude dietética – fim do fumo, da beberrice e da comilança –, acaba, pendularmente luculiano, com ameaços de enfartamento e síndrome de intoxicação etílica; o velho, maquilhado como uma balzaquiana fanada.

sábado, 29 de dezembro de 2012

Henri, le chat noir/ O Existencialismo não é um Humanismo


A revista Visão apresentou-o à gataria filosófica portuguesa: É preto. Não toca piano. Fala francês com sotaque americano. Mas nós sabemos mais. Passeou-se felinamente por lucarnas e águas-furtadas de Saint-Germain-des-Prés e terá, no Tabou, ouvido o ron ron filosofante de Sartre e Camus e as canções de Juliette Gréco. Politicamente, é um Realista Depressivo; filosoficamente, um Existencialista Animalista, isto é, alguém para quem o Existencialismo não é um Humanismo e que combina a glosa dos topoi conceptuais deste movimento filosófico (o absurdo, a angústia, a liberdade, o tédio, a náusea) com a acerada crítica especista do sapiens sapiens. Felis silvestris catus, como Garfield, não professa, porém, as suas simpatias filosóficas para com a escola canídea dos cínicos, com a qual mantém, aliás, uma mordaz disputa intelectual. Le voilá: Henri, le chat noir.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Musicofilias/Sufjan Stevens - Put the Lights on the Tree




O homem que queria gravar um álbum para cada um dos cinquenta estados americanos (50 states project) e gravou 5 ep's de música de Natal, antiga e original, volta a deixar-nos em estupor admirativo. Depois do brilhante Age of Adz, Sufjan Stevens reincidiu e volta a dar-nos música sobre o Natal, para o Natal, para gostar do Natal, para detestar o Natal, mas nunca, nunca, valha-nos o génio de Sufjan Stevens, música de Natal. Cinco ep's, 58 faixas. Tomai e ouvi todos, este é o Sufjan Stevens.

Dicionário Do Mofino 13


Natal, s.m. Aniversário ímpar em que não faz sentido assediar o aniversariante com votos de longevidade (e que terá levado o apologeta cristão Arnobius a ridicularizar a ideia pagã de celebrar o aniversário dos deuses); trégua nas desavenças familiares para que possam ser retomadas no dia seguinte com redobrada fereza; período em que o homem descobre a sua Humanidade em copiosíssimas ingestões e contritas indigestões; dia em que descobrimos que a fonte e a raiz de todo o Bem é o prazer do ventre; época na qual a felicidade se eleva à exaltação e estatela na depressão; altura do ano em que entreabrimos os corações, abrimos a bolsas e escancaramos as portas à gula da parentela.

domingo, 23 de dezembro de 2012

Dicionário Do Mofino 57


Caridade, s.f.  virtude teologal fundada no apotgema que diz haver maior felicidade em dar do que em receber  -  useiramente  negado por quem tem de receber.  O espírito sedicioso crê que a caridade atrasa a revolução e futura a felicidade maior para todos, o que, logicamente, acabaria com ela.

sábado, 22 de dezembro de 2012

Diário dos Perplexos/Deus Aprendeu Bom Grego?




A propósito da bizantina e católica questão de saber se, aquando da natividade, havia ou não gado vacum e asinino no presépio, foram já arredadas todas as dúvidas: não havia. Podem embezerrar alguns, asneirar outros, mas não senhor, não havia, e di-lo ex cathedra quem é infalível, o Papa, em livro recente sobre Jesus Cristo. Sobre esta ninhice hermenêutica das Escrituras estamos conversados, mas Bento XVI não se queda por aqui: não só o burro e a vaca não estavam no presépio como a virgindade da mãe de Jesus Cristo é uma verdade inequívoca da fé. Ora, hoc opus, hic labor est ou, em tradução libertária da minha avó Maria, aqui é que a porca torce o rabo. E torce porquê? Porque se sobre as alimárias é fácil encontrar a corroboração testamentária, sobre a virgindade de Maria a coisa pia mais fino. Há uma disputação linguística perene sobre as palavras que o hebraico e o grego usaram para se referirem à mãe do Messias. Recentemente, o teólogo José Tolentino de Mendonça, a propósito de um livro cometido por José Rodrigues dos Santos, veio reafirmar o que já era consabido: nas profecias de Isaías escritas em hebraico a palavra que este usou para se referir à mãe do Messias foi “mulher jovem”, almah, e não virgem. Na tradução para grego, o autor enganou-se neste versículo e em vez de “mulher jovem” a palavra que usou foi parthénos, ou seja,” virgem”. O problema é que o lapsus calami do autor induz mil interpretações, que fazem deste engano uma interminável disputa exegético-teológica. É claro que Nietzsche, mofino, resolveria o assunto de outro modo e perguntaria: mas quem é que mandou o autor, deus, usar uma língua que não aprendeu bem?

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Prof.


Avaliação final. Treze alunos. Seis com três classificações negativas, dois com quatro classificações negativas, dois com seis classificações negativas, dois com sete classificações negativas, um com nove classificações negativas.
Linhas de faltas a formigar na pauta.
A demagogia prometeica e delusória do voluntarismo pedagógico: Planos de Diferenciação, Actividades de Recuperação de Aprendizagens, Planos Individuais de Trabalho.
A escola como o único lugar no qual se acredita ser possível o possível impor-se ao real. A escola como o impossível lugar da enérgeia da utopia, inversamente proporcional ao quietismo do conformismo social e económico - não viver acima das suas possibilidades, não desejar acima das suas possibilidades, não ser acima das suas possibilidades.
No dia três de Janeiro, um incréu abrirá a porta da sala dois e recitará em surdina: concede-me serenidade para aceitar as coisas que não posso mudar, coragem para mudar aquelas que posso e lucidez para reconhecer a diferença.
Depois é o sumário.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Diário dos Perplexos/Adam Lanza


Di-lo Walter Benjamin no ensaio Para uma Crítica da Violência. O grande criminoso suscita  admiração e estupor no povo, por mais facinorosos que sejam os seus móbeis. Isto deve-se não ao acto, mas sim à violência de que esse acto dá testemunho.
Mas de que violência dá testemunho um acto de violência sem sentido? No Gente do Milénio, Ballard assesta a sua visão panóptica sobre a irrealidade contemporânea e uma personagem diz:
 - O Richard diz que as pessoas que acham que o mundo não tem significado encontram significado na violência sem sentido.
E remata:
- Mas um acto de violência verdadeiramente sem sentido, disparar ao acaso em cima de uma multidão, prende a nossa atenção durante meses. A ausência de motivo racional carrega em si um significado próprio.

domingo, 16 de dezembro de 2012

Diário dos Perplexos/“Too soon to speak out about a gun-crazy nation? No, too late.”




Em 2003, a convite da revista The Atlantic Monthly, Bernard-Henri Lévy refez a viagem de Alexis de Tocqueville na América, de que resultou o road book American Vertigo - inçado, aliás, dos estereótipos useiros e vezeiros: Freaks, Fatties, Fanatics. Em Fort Worth Bernard-Henri Lévy visita um gun show e tem uma visão perturbadora: jovens, velhos, famílias, apreciam e compram armas variegadas, modernas e antigas.
Algumas horas depois da tragédia de Newtown , o documentarista Michael Moore twittou: “Too soon to speak out about a gun-crazy nation? No, too late.”

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Diário dos perplexos/@Pontifex


Achtung@Pontifex! Olhai o La Boétie:

 Uma só coisa ele tem mais do que vós e é o poder de vos destruir, poder que vós lhe concedestes.
 Onde iria ele buscar os olhos com que vos espia se vós não lhos désseis?

 Discours de la Servitude Volontaire

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Diário dos Perplexos/Luta de Classes




Ao cuidado de Isabel Jonet, que antepõe a caridade à justiça, pois jamais perceberá que é necessário ser justo antes de ser generoso, e ignora que um verdadeiro cristão pode dar por caridade o que é devido por justiça, mas nunca o fará sem pudor e esperança: o pudor de não haver justiça, a esperança de que ela possa ser feita.

Diário dos Perplexos/Folk Sociology


Quando Isabel Jonet se adentra pela Folk Sociology, até os seus indefectíveis se quedam em estupor pânico: ora são os imigrantes que não têm vontade de trabalhar, porque vêm a fugir da guerra nos seus países; ora são os gregos que adoram discutir e dificilmente conseguem chegar a uma solução; ora são os alemães, que são mais práticos e cumprem as decisões; ora a solidariedade tem a ver com direitos adquiridos; ora a caridade é melhor do que a solidariedade, porque nos permite ir um a um. Ninguém aguenta tanto esprit de finesse.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Da Servidão Voluntária



A rede social Facebook ultrapassou mil milhões de utilizadores. Uma rede que,   tomando de empréstimo, desabusadamente, o título de um livro famoso de Erving Goffman, induz uma espécie de apresentação do eu na vida quotidiana em que o aparecer expressivo de cada persona coloca as momentosas questões sobre o respeito da vida privada e o uso e abuso dos dados pessoais.
A revista Philosophie de Outubro invoca a sageza suspicaz do Discours de la Servitude Volontaire e coloca La Boétie a interpelar esse universo multitudinário:

Esse que tanto vos humilha tem só dois olhos e duas mãos, tem um só corpo e nada possui que o mais ínfimo entre os ínfimos habitantes das vossas cidades não possua também; uma só coisa ele tem mais do que vós e é o poder de vos destruir, poder que vós lhe concedestes.
         Onde iria ele buscar os olhos com que vos espia se vós não lhos désseis?

sábado, 8 de dezembro de 2012

15 minutos


Pratos destradicionalizados, descontextualizados, world fusion, que combinam produtos e sabores à margem das tradições e atavismos papilares. Pratos extravagantes, surpreendentes, fantasiosos, que transformam a manducação em diversão e que os anglo-saxónicos nomeiam sapidamente como eatertainment. Receitas equilibradas, nutritivas, criativas, informais e divertidas, mas sem cabidela para o epicurismo gargantuesco das grandes comezainas e comilanças. A cozinha já não é l'art de maîtriser le feu e a lentidão deixou de ser uma virtude culinária. Lipovetsky diria que esta luminária cumplicia na redução da alimentação à forma-moda. Bom proveito.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Prof.



Já aqui escrevemos bastamente sobre Stephen Ball e a sujeição dos professores aos terrores da performatividade (relatórios atrás de relatórios, actas atrás de actas, justificações atrás de justificações, avaliações atrás de avaliações, evidências atrás de evidências). A designada avaliação do desempenho é um destes terrores da performatividade que, usando as palavras do filósofo e crítico literário António Guerreiro, em artigo publicado no Expresso-Atual de 11-08-2012,  longe de ser uma prática metodológica/epistemológica sofisticada relevando de uma ciência, é um mecanismo puramente gestionário ao serviço de uma ideologia e de um aparelho burocrático e administrativo.

Leiamos o seguinte texto do professor João Ruivo que, malgrado verberar a pretensão obscena do Ministério de querer transformar professores comuns em professores avaliadores (os primeiros, treinados na avaliação dos conhecimentos discentes, os segundos, obrigados a avaliar desempenhos docentes, pelo que confundir a tarefa dos dois é confundir a Estrada da Beira com a beira da estrada), parece querer definir as condições de possibilidade da avaliação dos professores e ter implícita a ideia da redução do desempenho docente a índices rigorosamente mensuráveis:

Para avaliar professores requerem-se características pessoais e profissionais especiais, para além de uma formação especializada e de centenas de horas de treino, dedicadas à observação de classes e ao registo e interpretação dos incidentes críticos aí prognosticados. Cuidado com as ratoeiras! Quem foi preparado para avaliar alunos não está, apenas pelo exercício dessa função, automaticamente preparado para avaliar os seus colegas…
(…) É necessário que domine com rigor as técnicas de registo e de observação de aulas, conheça as metodologias de treino de competências, os procedimentos de planeamento curricular, e as estratégias de promoção da reflexão crítica sobre o trabalho efectuado.

O artigo refere  as técnicas de registo e de observação de aulas, as metodologias de treino de competências, os procedimentos de planeamento curricular, como se esta utensilagem, apesar da sua vagueza  assim expressa no ideolecto sisudo das Ciências da Educação, fosse interna a um saber já validado e isento de ideologia. Na verdade, não é. Segundo António Guerreiro no artigo supracitado, referindo-se à rigorosíssima avaliação das fundações feita pelo governo, os avaliadores medindo, calculando, numerando e comparando, imaginam-se a fazer um trabalho científico. Tão científico que nenhuma décima escapa à medição apuradíssima. Na verdade, não estão. E conclui António Guerreiro:

Os avaliadores são uma seita e a sua mística é a ordem quantitativa pela qual tudo acede a um estado estatístico e entra num ranking. Mas como sabem que o seu trabalho não é interno a um saber, eles precisam que os avaliados (que, por sua vez, são os avaliadores dos outros) lhes outorguem legitimidade, que a creditação seja ao mesmo tempo coerciva e consentida. Esse consentimento tácito é obtido através da autoavaliação que os avaliados são convidados a fazer e que lembre o ritual da autocrítica que era imposto nos regimes comunistas. Pela autoavaliação, o sujeito avaliado confessa os seus pecados, incrimina-se a si próprio, denuncia as suas inclinações menos produtivas. Tudo isso para responder às eternas injunções da burocracia e também para assumir uma cumplicidade estratégica com os avaliadores em posição de mestres.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Dave Brubeck/Dezembro 6, 1920 – Dezembro 5, 2012

Prof.


 Grupos inteiros de questões sobrelevadas. Caligrafia ininteligível. Disgrafias e disortografias várias. Um arremedo de sintaxe. Vinte testes, dezoito negativas. Só que aqui não opera o hegeliano poder e trabalho do negativo. Todas estas negativas, apesar do seu potencial narrativo sobre o que se estudou e não estudou, o que não se leu e não foi dado a ler, o que não se viu e não foi dado a ver, o que não se ouviu e não foi dado a ouvir, são o sobejo da provação da privação. Mesmo dela sobeja sempre alguma coisa. De modo que notícias como esta, para além de nos revelarem a provação da privação, são o sinal instante do impoder da escola.