quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Camille, Ilo Veyou





Tal como certas personagens que adoramos odiar, Camille Dalmais inscreveu-se em Sciences-Po, em Paris. Mas rapidamente se apercebeu do seu tremendo erro, arrepiou caminho e – ao contrário de outros – decidiu reinserir-se socialmente, optando pela música. Conhecemo-la através dos Nouvelle Vague, esse divertimento de "easy-listening" chique entregue à missão de tropicalizar e reconfigurar para o "french-touch" algum reportório punk e new wave que se punha mais a jeito. Era dela a voz que escutámos a amaciar insolentemente "In A Manner Of Speaking" (Tuxedomoon), "Guns Of Brixton" (Clash), "Too Drunk To Fuck" (Dead Kennedys) e "Making Plans For Nigel" (XTC). Não foi a única pérola a ser gerada no interior da ostra-NV: devemos-lhe, igualmente, a óptima Phoebe Killdeer (& The Short Straws) de Weather’s Coming. Camille, entretanto, gravou Le Sac des Filles (2002), Le Fil (2005) eMusic Hole (2008), etapas preparatórias onde aqueceu os motores da experimentação vocal e da contenção instrumental – com tirocínio por peças de Benjamin Britten e presença na banda sonora deRatatouille – que haveriam de desembocar neste magnífico Ilo Veyou, espécie de dislexização de “I Love You”. É fácil imaginá-la como uma Björk com os pés um pouco mais assentes na terra (mesmo que do ponto de vista do marciano que, em "Mars Is No Fun", prefere abandonar o seu planeta e “wander all afternoon in the shopping mall of Milton Keynes”), dedicada a "lullabies" imponderáveis, deliciosas paródias de patrioteirismo-Piaf (“La Suisse attire les comptes en banque, les anglais ont un humour exquis, le Nicaragua produit la cocaïne et la revend au meilleur prix, la France, la France des photocopies”), pseudo-exotismos minimalistas, bizarrias de "kindergarten" surreal. Mas Camille é única e irrepetível.



João Lisboa -  Provas de contacto

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Economia da salvação


A economia da salvação do ethos protestante (da virtude laboriosa à beatitude graciosa), dizia  Dahrendorf, teria deixado há muito de ser tão útil como costumava ser. Sem o hedonismo das massas – sem as pessoas a consumir antes de perceberem se ganharam o que gastam – a economia moderna ficaria num estado de depressão permanente. Os antigos valores da satisfação adiada da classe média, de poupar hoje para destruir amanhã, cederam o lugar a valores de gratificação antecipada, de gozar a vida hoje e pagar amanhã.
Mas o rigorismo pietista do ethos protestante resmoneia a dívida-culpa (Schuld) e impõe a sua economia da salvação. Economia sempre foi um conceito teológico.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Sex Files/ Ovídio e a Arte da Infidelidade



Javier Marias, fescenino, definiu a fidelidade como a constância e a exclusividade com que um determinado sexo penetra ou é penetrado por outro igualmente determinado, ou se abstém de ser penetrado ou de penetrar noutros. Ora, se infidelidade não é mera cosa mentale, a sua ocultação  é cosa corporale. Escreveu Ovídio Na Ars Amatoria:

   As tuas aventuras, por melhor que as escondas, se vierem, no entanto,
                                                                                            a ser descobertas,
                  ainda que as descubram, tu, mesmo assim, nega-as até ao fim;
       nesse caso, não sejas submisso nem mais delicado do que tens por
                                                                                                costume;
                              tais atitudes são sinal evidente de sentimentos de culpa.
Pelo contrário, não poupes o teu corpo; toda a paz reside, apenas, nele:
               é na cama que tens de desmentir ter havido, antes, outra Vénus.


Ovídio, Ars, 2.409 - 414

(Tradução de Carlos Ascenso André)

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Dicionário do Mofino 51

Pieguismo, s.m. Escola filosófica que refutou o Estoicismo (o Estoicismo defendia a apatheia perante o infortúnio próprio, o Pieguismo perante o alheio); na história bíblica, Job é o modelo profético da pieguice: depois de consumida a sua pele, despojado dos filhos e dos servos e o seu hálito ser ter tornado intolerável à esposa, quedou-se no queixume como símplice funcionário público; doença afecto-contagiosa, pandémica nas tertúlias da hipocondria e outros areópagos do amor próprio; tipo de piedade em que o merecedor tem grande merecimento e pouco discernimento; depois do Pieguismo impetrante do Livro de Job, só o Pieguismo febricitante de António Lobo Antunes fez jus à ortodoxia desta escola de pensamento.


Pachos na testa, terço na mão, 
Uma botija, chá de limão, 
Zaragatoas, vinho com mel, 
Três aspirinas, creme na pele 
Grito de medo, chamo a mulher. 
Ai Lurdes, que vou morrer. 
Mede-me a febre, olha-me a goela, 
Cala os miúdos, fecha a janela, 
Não quero canja, nem a salada, 
Ai Lurdes, Lurdes, não vales nada. 
Se tu sonhasses como me sinto, 
Já vejo a morte, nunca te minto, 
Já vejo o inferno, chamas, diabos, 
anjos estranhos, cornos e rabos, 
Vejo demónios nas suas danças, 
Tigres sem listras, bodes sem tranças, 
Choros de coruja, risos de grilo, 
Ai Lurdes, Lurdes, fica comigo.
Não é o pingo de uma torneira, 
Põe-me a Santinha à cabeceira, 
Compõe-me a colcha, 
Fala ao prior, 
Pousa o Jesus no cobertor. 
Chama o Doutor, passa a chamada, 
Ai Lurdes, Lurdes, nem dás por nada. 
Faz-me tisana e pão-de-ló, 
Não te levantes, que fico só, 
Aqui sozinho a apodrecer, 
Ai Lurdes, Lurdes, que vou morrer.

(António Lobo Antunes)

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Labor perpétuo

Toni Negri cunhou o conceito trabalho cognitivo para se referir às transformações do trabalho numa rede em que os elementos fundamentais relevam, essencialmente, da proficiência do conhecimento e da capacidade de organizar a cooperação, permitindo pensar o homo laborans fora da relação binária "trabalho/objecto criado" e reflectir sobre a lógica dos seus efeitos. Por um lado, a hegemonia do trabalho cognitivo implica uma mobilidade e flexibilidade generalizadas; por outro, a sua progressiva imaterialização abriu uma brecha que ameaça tudo sobrelevar. As fronteiras entre a casa e o trabalho, a domesticidade e a empresa são difíceis de estabelecer, e a vida devém aquilo que fazemos trabalhar numa gigantesca rede de labor perpétuo - labor perpétuo a que somos instados pelo mail recebido no fim-de-semana, o labor perpétuo do computador, do tele-trabalho e da compulsão ergomaníaca dos smartphones e dos dispositivos ergonómicos da omnipresença do trabalho que, opressivamente, frustram a possibilidade de evasão.