sexta-feira, 5 de julho de 2013

Professores, proletários, missionários

O diagnóstico é certeiro: …o professor, obrigado a responder a novos objectivos da escola que já nada têm que ver com a sua missão original (objectivos cada vez mais políticos: retardar a entrada dos jovens na vida activa, corrigir as desigualdades sociais, substituir a educação parental, policiar os costumes, etc.), teve que começar a enfrentar tarefas policiais, psico-sociais e de animação. Mas António Guerreiro prossegue, percuciente e sagaz ao analisar a proletarização docente e ao ver nela uma paulatina perda de autonomia, até ao ponto em que a actividade do professor deixa de ser uma actividade intelectual.
Quem frequenta as salas de professores ou fala com eles sabe sobre o que escreve António Guerreiro: o assoberbamento burocrático – os professores transmudados em amanuenses e mangas-de-alpaca; a falta de tempo para ler e pensar; os nefandos terrores da performatividade - relatórios atrás de relatórios, actas atrás de actas, justificações atrás de justificações, avaliações atrás de avaliações, evidências atrás de evidências; a sobreocupação horária e a sua extensão à sorrelfa por via da Internet e do trabalho imaterial.

Devido à sua proletarização, os professores foram transformados em espíritos incuriosos, leitores relapsos e intelectualmente alheados, e isso faz com que a parole professorale seja, hoje, proferida por uma voz sem eco, flatus vocis.


Professores, proletários, missionários

Em 1971, Roland Barthes escreveu, para a revista Tel Quel, um texto a que deu o título: Escritores, Intelectuais, Professores. Por si só, tal título mostra como os professores foram entretanto deslocados e já não pertencem a esse mundo de outrora. Eles surgiam então ao lado de outras duas respeitáveis classes (que, aliás, também já não têm o mesmo estatuto), enquanto detentores de uma autoridade adquirida automaticamente pela parole professorale. Essa modalidade de discurso, herdeira da Retórica e dotada de uma autoridade moral conferida pelo saber, não podia sobreviver às novas condições que retiraram o saber da esfera exclusiva do cânone escolar e em que o professor, obrigado a responder a novos objectivos da escola que já nada têm que ver com a sua missão original (objectivos cada vez mais políticos: retardar a entrada dos jovens na vida activa, corrigir as desigualdades sociais, substituir a educação parental, policiar os costumes, etc.), teve que começar a enfrentar tarefas policiais, psico-sociais e de animação. A fortuna de um actual ministro que chegou ao seu posto à custa da denúncia do “eduquês” deve-se ao facto de, com esse chavão, ele apontar para um desvio da escola em relação a essa missão original que, presume-se, ele achava que podia e devia ser restaurada. Entretanto, em sentido contrário a uma tal missão, os professores têm sido submetidos – sem tréguas e desde há muitos anos – ao tratamento mais ignóbil a que uma classe profissional pode estar sujeita. Se quisermos utilizar um termo genérico para designar o que lhes foi infligido (para além das “sevícias” – da parte dos alunos, da parte dos pais – a que ficaram expostos a partir do momento em que lhes foi retirado todo o domínio) temos de falar de uma progressiva, sistemática e programada proletarização. Em que é que ela consiste? Numa total perda de autonomia, até ao ponto em que a actividade do professor deixou de ser uma actividade intelectual. A partir desse momento, a autoridade do professor – que, aliás, para existir é necessário que esteja integrada num sistema que a detenha - ficou completamente arruinada. O sinal mais óbvio dessa proletarização – aquele onde ela é exibida pela máquina governamental com uma clara intenção de humilhação – é o horário de trabalho. Dantes, o trabalho do professor compreendia o tempo controlado (o tempo lectivo) e o tempo autónomo, que ninguém conseguia avaliar exactamente a quanto correspondia – dependia do treino, dos escrúpulos, da responsabilidade e do sentido de missão do próprio professor. Daí, a ideia tão repetida de que os professores gozam (gozavam) de um horário privilegiado. Agora, não só o tempo de trabalho controlado aumentou bastante, como aquilo que deveria ser tido por conta de trabalho autónomo perdeu esse estatuto porque o Ministério o passou a contabilizar no horário oficial: trinta e cinco horas de trabalho na escola, mais cinco horas de trabalho em casa. Quem alguma vez foi professor sabe bem que essas cinco horas semanais estão longe de ser suficientes. Mas pior do que fazer horas extraordinárias que não são pagas é sentir que até o pouco que resta aos professores de tempo autónomo entra na contagem diabólica do tempo controlado. O horário dos professores pode até não ter efectivamente aumentado. Mas, em termos simbólicos, chegou-se à estação terminal que diz: proletarização.

António Guerreiro