terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Diário dos Perplexos/As Geórgicas para deputados




Maioria quer 'ressuscitar' TV Rural
Jornal Sol

(Hipótese 1)
Os senhores da maioria andaram a tresler o De Agri Cultura de Catão, quiçá as Geórgicas de Virgílio, e tomaram-se de amores pelas virtudes da frugalitas e paupertas da vida agrícola.

(Hipótese 2)
Os senhores deputados da maioria andaram a rever uns compactos do TV Rural e foram tomados de supetão pelo amor da lavoura, que fora encontrada jacente e mendicante à porta do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Aos georgoi da maioria:

Com o arado recurvo, rasga a terra o lavrador:
daí depende o labor do ano, daí o sustento da pátria,
e dos netos pequeninos, as manadas de bois e os touros úteis;
não há descanso, enquanto o ano se não encher de frutos,
de crias de gado ou das medas do colmo de Ceres,
não carregar os sulcos com uma colheita que vergue os celeiros.

Geórgicas, Livro II

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Diário dos Perplexos/Index Librorum Prohibitorum




Timeo hominem unius libri, temo o homem de um só livro, dizia o Doctor Angelicus. Dizia o S. Tomás, mas desdiz a prelatura da Opus Dei que, a crer no Diário de Notícias, ressuscita o defunto Index Librorum Prohibitorum e arrenega 33 573 livros. É obra! Na Literatura, dos últimos quinze prémios Nobel, só um sai escapo, sendo que os restantes têm setenta e duas obras proibidas. Nas Ciências Sociais são indexados muitos e variegados livros, mas vexados por pouco opudeísmo, em particular, os mestres da suspeita: Marx, Freud e Nietzsche. O corpus delgado da literatura portuguesa também não se livrou do flagelo e do cilício e, para além do vade retro já canónico ao Saramago (12 livros censurados), aparecem  67 obras de escritores portugueses, Eça incluído com grande merecimento. É obra!
Os censores do Index Librorum Prohibitorum não têm mãos a medir nem lápis para afiar, e aqui, justamente, é que a porca torce o rabo ou, para usar uma latinice mais do agrado dos opudeístas, hoc opus hic labor est. O furor editorial é tamanho, que do furor censório se há-de furtar muito livro ímpio a tentar o leitor pio com a letra de forma. O mês passado, por exemplo, o José Rodrigues dos Santos e duas flausinas da Casa dos Segredos publicaram livros pouquíssimo católicos e, que eu saiba, ainda não constam no Index Librorum Prohibitorum da Opus Dei. Sede pois zelosos, irmãos. Se no trabalho e na vida quotidiana é provável encontrar Deus, toda a gente sabe o que é certo encontrar em certos livros. E olhem que não é só no Devil's Dictionary do Bierce.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Diário dos Perplexos/Fazer Viver e Deixar Morrer




No Nascimento da Biopolítica, e indagando sobre como a vida é reificada e é erigida em facto político adentro da teoria clássica da soberania, Michel Foucault descreveu como, no século XIX, o poder soberano de fazer morrer e deixar viver se transmudou no poder de fazer viver e deixar morrer: o poder disciplinar, que já em fins do século XVII se centrava no corpo individual (organizando, esquadrinhando, vigiando), possibilitou à biopolítica implantar-se numa outra escala. Tomando a vida como elemento político por excelência, na biopolítica perpassa ainda o antigo poder soberano. Com os investimentos de poder centrados no homem-espécie, a vida passou a ser administrada e regrada pelo Estado. Em nome da protecção das condições de vida da população, preserva-se a vida de uns, enquanto se autoriza a morte de outros tantos. Se o poder soberano já expunha a vida humana individual à morte, ainda que de maneira limitada, o biopoder expõe a vida de populações e grupos inteiros.
Posto isto, e quando em Portugal, de sorrate, se insinua uma política de racionamento dos medicamentos obscura, as declarações do senhor Taro Aso não são uma japonerie. Nada de ilusões: como já afirmara Foucault em La Naissance de la Médicine Sociale (1974), o corpo é uma realidade biopolítica, a medicina é uma estratégia biopolítica, o poder é o poder de fazer viver e deixar morrer.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Prof


Sim, senhor Firmino, o seu filho voltou a faltar, senhor Firmino. E enquanto na linha perpassa a costumada exprobração aturdida - aquele malandro, grande malandro, eu desanco-o! -, vou cismando na malandrice do malandro: saída de casa matino-pontual; mochila às costas; o até logo confiado; o corricar ao autocarro; o chegar ao portão da escola e, súbito, o sorrir, o parecer lembrar-se da citação de Nietzsche - quem não tem dois terços do dia para si é escravo –, o cirandar para o café. O único problema, penso eu (mas isto sou eu a pensar), é o malandro, assim, não chegar a ler o Nietzsche.
Sim, senhor Firmino, eu vou falar com o malandro.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Diário Dos Perplexos/George Orwell Rule


Ora aí está, urbi et orbi, não a Chatham House Rule, mas a George Orwell Rule: Jornalismo é publicar aquilo que alguém não quer que se publique. Tudo o resto é publicidade.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Erotic Flash Fiction


Depois de a enfermeira lhe ter pegado no pénis defunctus e ter introduzido a sonda na uretra; depois de ter olhado a sua boca purpurina e ter pensado numa frase da Agustina – todos os orifícios existem para dar prazer -, as coisas correram muito melhor.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Prof.


Pensar nas tarefas e nos vocábulos que as designam. Um arrepio mental somatizado nas Vértebras sacrais. Priorizar (horror e pavor!) o trabalho cria o primeiro impulso e quase gera a auto-satisfação do dever cumprido. Apre!: duas actas (o relato verosímil do inverosímil quotidiano da escola); dois relatórios (a burocracia, labor de Sísifo: empurrar a pedra até ao topo, vê-la rolar, recomeçar); um plano de educação sexual (É o seculo XX/É o sexo vintage//A nossa doença, a nossa militância – o Reininho de Freud & Ana); o catar das faltas e o seu cômputo em aplicação informática com tanto escaninho como um contador manuelino (a tecnognose das TIC a fagocitar a escrita, a leitura e a sua potentia crítica).  Depois, ajusto as mangas-de-alpaca e registo: João, dez faltas…

domingo, 13 de janeiro de 2013

Diário dos Perplexos/ Simmel e a Chanel Classic 2.55


Filipa Xavier é culpada por ter trocado, com o maneirismo diccional de uma certa upper class, o essencial pelo acessório, um acessório, uma mala Chanel Classic 2.55 - o modelo original desenhado por Coco Chanel. Simmel diria que Filipa suplementou a insignificância da pessoa, a sua incapacidade de, só por si mesma, individualizar a existência, através da incorporação num círculo caracterizado justamente pela moda, pelo acessório. Quem nunca trocou o essencial pelo acessório e expôs a sua própria insignificância que atire a primeira pedra. Da ordem do suplemento, do supérfluo e do desejo, na moda também opera uma das lógicas do inessencial, e o inessencial debate-se sempre com a ética e com a estética.
E atenção à litania do austero: não vivas acima das tuas possibilidades; não desejes acima das tuas possibilidades; não sonhes acima das tuas possibilidades.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Diário dos Perplexos/A Prestidigitação Numérica


Glosemos de novo Disraeli: há três tipos de mentiras: mentiras, mentiras danadas e estatísticas. E quando estas últimas são usadas como um ébrio usa um poste de iluminação - para apoio e não para obter luz - ou como um mero pontilhismo digital, como é este caso e foi o caso do estatístico que se afogou no lago que tinha uma profundidade média de um metro, estamos entregues à mais ardilosa arte da prestidigitação – a prestidigitação numérica.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Musicofilias/The Bryan Ferry Orchestra




Na revista Uncut, a album review do disco The Jazz Age, da The Bryan Ferry Orchestra, não augurava nada de promissor: Favourite songs from the Roxy man's past, played by jazz vets and cut in crackly mono… Mas depois de ouvir Love Is The Drug ou Slave To Love no estilo de Fletcher Henderson’s orchestra entertaining revellers at the ballroom of the Club Alabam in New York in 1922, o disco que parecia ser só mais uma bizarria retrómana de 2012 logra alcançar coisa luzida e dificultosa - acrescentar mais lirismo às canções de Ferry e dos Roxy Music.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Dicionário do mofino 58


Vinho, s.m. Criatura jovial gerada pela fermentação do sumo de uva, que conta já oito mil anos de história e igual tempo de peripécias; está na origem do primevo género dramático, a bebédia, do qual ninguém, estranhamente, se parece lembrar muito bem (à luz da poética clássica, na tragédia, a peripécia é a passagem da felicidade para a infelicidade, na bebédia, amiúde o contrário); no seu Il Vino – Un Discorso Sui Suoi Effetti Psicologici, e na sua  lustrosa prosa novecentista, De Amicis descreve como o bebedor de vinho começa por usar fastidiosos períodos com um comprimento ciceroniano ao princípio, cheios de comentários e achegas, e que se vão pouco a pouco desmoronando e desfazendo, até se reduzirem ao estilo picado dos oradores asmáticos, indubitavelmente mais persuasivo; o segundo sangue da humanidade nos dias de abstemia.