O diagnóstico é
certeiro: …o professor, obrigado a
responder a novos objectivos da escola que já nada têm que ver com a sua missão
original (objectivos cada vez mais políticos: retardar a entrada dos jovens na
vida activa, corrigir as desigualdades sociais, substituir a educação parental,
policiar os costumes, etc.), teve que começar a enfrentar tarefas policiais,
psico-sociais e de animação. Mas António Guerreiro prossegue, percuciente e
sagaz ao analisar a proletarização docente e ao ver nela uma paulatina perda de
autonomia, até ao ponto em que a
actividade do professor deixa de ser uma actividade intelectual.
Quem frequenta as salas
de professores ou fala com eles sabe sobre o que escreve António Guerreiro: o
assoberbamento burocrático – os professores transmudados em amanuenses e
mangas-de-alpaca; a falta de tempo para ler e pensar; os nefandos terrores da
performatividade - relatórios atrás de relatórios, actas atrás de actas,
justificações atrás de justificações, avaliações atrás de avaliações,
evidências atrás de evidências; a sobreocupação horária e a sua extensão à
sorrelfa por via da Internet e do trabalho imaterial.
Devido à sua
proletarização, os professores foram transformados em espíritos incuriosos, leitores
relapsos e intelectualmente alheados, e isso faz com que a parole professorale seja, hoje, proferida por uma voz sem eco, flatus vocis.
Professores, proletários, missionários
Em 1971, Roland Barthes
escreveu, para a revista Tel Quel, um
texto a que deu o título: Escritores, Intelectuais, Professores. Por si só, tal
título mostra como os professores foram entretanto deslocados e já não pertencem
a esse mundo de outrora. Eles surgiam então ao lado de outras duas respeitáveis
classes (que, aliás, também já não têm o mesmo estatuto), enquanto detentores
de uma autoridade adquirida automaticamente pela parole professorale. Essa modalidade de discurso, herdeira da
Retórica e dotada de uma autoridade moral conferida pelo saber, não podia
sobreviver às novas condições que retiraram o saber da esfera exclusiva do
cânone escolar e em que o professor, obrigado a responder a novos objectivos da
escola que já nada têm que ver com a sua missão original (objectivos cada vez
mais políticos: retardar a entrada dos jovens na vida activa, corrigir as
desigualdades sociais, substituir a educação parental, policiar os costumes,
etc.), teve que começar a enfrentar tarefas policiais, psico-sociais e de
animação. A fortuna de um actual ministro que chegou ao seu posto à custa da
denúncia do “eduquês” deve-se ao facto de, com esse chavão, ele apontar para um
desvio da escola em relação a essa missão original que, presume-se, ele achava
que podia e devia ser restaurada. Entretanto, em sentido contrário a uma tal
missão, os professores têm sido submetidos – sem tréguas e desde há muitos anos
– ao tratamento mais ignóbil a que uma classe profissional pode estar sujeita. Se
quisermos utilizar um termo genérico para designar o que lhes foi infligido
(para além das “sevícias” – da parte dos alunos, da parte dos pais – a que
ficaram expostos a partir do momento em que lhes foi retirado todo o domínio)
temos de falar de uma progressiva, sistemática e programada proletarização. Em
que é que ela consiste? Numa total perda de autonomia, até ao ponto em que a
actividade do professor deixou de ser uma actividade intelectual. A partir
desse momento, a autoridade do professor – que, aliás, para existir é
necessário que esteja integrada num sistema que a detenha - ficou completamente
arruinada. O sinal mais óbvio dessa proletarização – aquele onde ela é exibida
pela máquina governamental com uma clara intenção de humilhação – é o horário de
trabalho. Dantes, o trabalho do professor compreendia o tempo controlado (o
tempo lectivo) e o tempo autónomo, que ninguém conseguia avaliar exactamente a
quanto correspondia – dependia do treino, dos escrúpulos, da responsabilidade e
do sentido de missão do próprio professor. Daí, a ideia tão repetida de que os
professores gozam (gozavam) de um horário privilegiado. Agora, não só o tempo
de trabalho controlado aumentou bastante, como aquilo que deveria ser tido por
conta de trabalho autónomo perdeu esse estatuto porque o Ministério o passou a
contabilizar no horário oficial: trinta e cinco horas de trabalho na escola,
mais cinco horas de trabalho em casa. Quem alguma vez foi professor sabe bem
que essas cinco horas semanais estão longe de ser suficientes. Mas pior do que
fazer horas extraordinárias que não são pagas é sentir que até o pouco que
resta aos professores de tempo autónomo entra na contagem diabólica do tempo
controlado. O horário dos professores pode até não ter efectivamente aumentado.
Mas, em termos simbólicos, chegou-se à estação terminal que diz:
proletarização.
António Guerreiro
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