quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Dicionário do Mofino 51

Pieguismo, s.m. Escola filosófica que refutou o Estoicismo (o Estoicismo defendia a apatheia perante o infortúnio próprio, o Pieguismo perante o alheio); na história bíblica, Job é o modelo profético da pieguice: depois de consumida a sua pele, despojado dos filhos e dos servos e o seu hálito ser ter tornado intolerável à esposa, quedou-se no queixume como símplice funcionário público; doença afecto-contagiosa, pandémica nas tertúlias da hipocondria e outros areópagos do amor próprio; tipo de piedade em que o merecedor tem grande merecimento e pouco discernimento; depois do Pieguismo impetrante do Livro de Job, só o Pieguismo febricitante de António Lobo Antunes fez jus à ortodoxia desta escola de pensamento.


Pachos na testa, terço na mão, 
Uma botija, chá de limão, 
Zaragatoas, vinho com mel, 
Três aspirinas, creme na pele 
Grito de medo, chamo a mulher. 
Ai Lurdes, que vou morrer. 
Mede-me a febre, olha-me a goela, 
Cala os miúdos, fecha a janela, 
Não quero canja, nem a salada, 
Ai Lurdes, Lurdes, não vales nada. 
Se tu sonhasses como me sinto, 
Já vejo a morte, nunca te minto, 
Já vejo o inferno, chamas, diabos, 
anjos estranhos, cornos e rabos, 
Vejo demónios nas suas danças, 
Tigres sem listras, bodes sem tranças, 
Choros de coruja, risos de grilo, 
Ai Lurdes, Lurdes, fica comigo.
Não é o pingo de uma torneira, 
Põe-me a Santinha à cabeceira, 
Compõe-me a colcha, 
Fala ao prior, 
Pousa o Jesus no cobertor. 
Chama o Doutor, passa a chamada, 
Ai Lurdes, Lurdes, nem dás por nada. 
Faz-me tisana e pão-de-ló, 
Não te levantes, que fico só, 
Aqui sozinho a apodrecer, 
Ai Lurdes, Lurdes, que vou morrer.

(António Lobo Antunes)

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