sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011
Confiança e Medo na Cidade - Underclass Bauman
Escreveu Zygmunt Bauman no Confiança e Medo na Cidade que, desde os seus alvores, a modernidade sempre produziu « gente supérflua». Gente que, como diz Bauman sem «meias-tintas» e de chofre, « do ponto de vista das pessoas de bem, seria preferível que desaparecessem do mapa» ou se velassem com o diáfano véu da inexistência. Naturalmente, muita desta «gente supérflua» frequenta os centros de emprego e de saúde, a assistência social e as farmácias ( Rui Bebiano no Terceira Noite escreveu um post sobre o tema), forcejam lutando pela dignidade, mas, não raras vezes, acabam por morrer como viveram - invisivelmente. O escândalo da sua morte - aberto às escâncaras pelo proscénio emocional dos media - é o escândalo da decomposição dos laços sociais.
Bauman diz que existe uma palavra, inventada nos Estados Unidos, « que se propagou como um violento incêndio em toda a Europa». Trata-se da palavra desclassificado (underclass) e anda por aí a passinhar a superfluidade .
A dissolução da solidariedade assinalou o final da luta contra o medo adoptada pela modernidade sólida. Chegou a hora de afrouxar, desmantelar ou quebrar os mecanismos de protecção artificiais e dirigidos. A Europa, o primeiro continente a proceder a uma revisão da era moderna, e o primeiro a conhecer todo o seu leque de consequências, está a viver hoje a «segunda parte da liberalização acompanhada pelo individualismo», ainda que, desta feita, não por decisão própria, mas por ter sucumbido à pressão de forças mundiais que não pode dominar nem conter por muito que o deseje.
Paradoxalmente, quantos mais são os restos que localmente subsistem dos serviços que protegiam o indivíduo «do nascimento até à morte», e que são hoje atacados por todos os lados, mais tentador se torna descarregar o sentimento de perigo iminente – cada vez mais acentuado - através de reacções xenófobas.
Os poucos países (principalmente escandinavos) que ainda se mostram relutantes perante o abandono dos serviços de assistência estatais legados pela modernidade sólida, e se opõem às múltiplas solicitações que exortam à sua redução ou dissolução completa, consideram-se uma fortaleza sitiada por forças inimigas e estão persuadidos de que são os últimos representantes do Estado social, sendo este um privilégio que deve ser defendido a todo o custo dos intrusos que desejam saqueá-lo ou reduzir ainda mais as suas prestações.
(…) Quando a competição substitui a solidariedade, as pessoas vêem-se abandonadas aos seus próprios recursos dolorosamente escassos e manifestamente insuficientes. A deterioração e a decomposição dos laços convertem-nas, sem o seu consentimento, em indivíduos de iure, mas um destino opressivo e ingovernável conspira no sentido de lhes negar o ingresso na categoria de indivíduos de facto.
Zygmunt Bauman – Confiança e Medo na Cidade
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