quinta-feira, 24 de março de 2011
José Gil: O Homem Avaliado
No século V A.C. Protágoras de Abdera anunciava epigramaticamente a sua doutrina do homo mensura e estribilho de todos os humanismos - o homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são –, e, milénios transcorridos, já no dealbar do século XXI e numa afirmação que não pode deixar de ser lida como uma espécie de antilogia tão ao gosto do de Abdera, José Gil chama a atenção para o facto de se anunciar, como figura social do homem do século XXI, o homem avaliado e medido, o homem não já medida e medidor subjectivo à sua escala, mas objectivado e dessubjectivado por processos de classificação e medida inumanos, aplicados a todas as esferas da sua existência social.
Popper já tinha alertado para a impertinência da aplicação deste furor quantificador a âmbitos que, pela sua complexidade, se furtam a esta abordagem e, numa obra provocativa por todos conhecida - A Falsa Medida do Homem -, Stephen Jay Gould desmistificou essa paradigmática mistificação classificatória da mensuração Psicológica do século xx, denominada Quociente de Inteligência, logrando elucidar as suas motivações ideológicas e denunciar a sua pseudocientificidade.
Mas quem é esta figura social do homem do século XX – o homem avaliado? Quais as suas origens e determinações? Que propósitos servem nos dispositivos burocráticos do biopoder? Que convicções lhe subjazem? Que convicções geram? Quais as suas figurações sociais, aqui e agora?
Quem examine em pormenor toda esta extraordinária burocracia (...) a que estão submetidos os professores fica com a ideia de que uma espécie de delírio atravessa quotidianamente os conceptores e decisores do ME. É verdade que o Governo recuou depois das manifestações e greves dos professores. Mas não esqueçamos que toda aquela burocracia que caiu sobre os professores, sufocando-os, impedindo-os de ensinar, foi pensada para ser aplicada - o que revela mesmo um certo delírio na concepção das tecnologias de biopoder. O processo de domesticação dos professores está em curso - e longe de ter terminado. Mas o que se passou chega para ver que tipo de "modernização" da educação, através da avaliação, está nos espíritos dos governantes, mesmo se estes, pela resistência dos professores, que contaminou a opinião pública, foram levados a ceder em certos aspectos.
Porquê tudo isto? Porque o interesse do Governo é, antes de mais, cumprir a racionalidade orçamental, levando dezenas de milhares de professores a abandonar a escola. Através, afinal, de um sistema educativo em que avaliar significa desnortear, desanimar, dominar, humilhar, desprezar os professores, os alunos e a educação. É o máximo de mais valia de biopoder que o Governo quer extrair - com o risco, inevitável, de o sistema se voltar contra si mesmo.
(…)
No processo de domesticação da sociedade, a teimosia do primeiro-ministro e da sua ministra da Educação representam muito mais do que simples traços psicológicos. São técnicas terríveis de dominação, de castração e de esmagamento e de fabricação de subjectividades obedientes. Conviria chamar a este mecanismo tão eficaz "a desactivação da acção". É a não-inscrição elevada ao estatuto sofisticado de uma técnica política, à maneira de certos processos psicóticos.
José Gil
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