terça-feira, 9 de agosto de 2011

Ballard - O Romance como Modelo Profético



Em 2003 Ballard publicava Millennium People e, num simulacro de distopia urbana, augurava a rebelião da classe média londrina, para a qual "os actos desprovidos de significado são os únicos que parecem ter significado". Em 2004, Paulo Moura entrevistou-o para o jornal Público e o áugure não se fez rogado.
Questionado sobre se os seus livros seriam avisos, respondeu: Acho que sim. Todos eles. É como colocar um sinal na rua a dizer: "Cuidado! Curvas perigosas mais à frente! Abrande!"

P. No seu livro, a classe média iniciou uma revolução? De que se queixa a classe média?
R. As pessoas não podem estacionar o carro à porta de casa, as rendas estão cada vez mais altas... a classe média está sempre a queixar-se.
P. Mas daí a lançar uma revolução...
R. Lançaram uma revolução mas no fim foram todos para casa. Foi um pequeno movimento político sem sentido.
P. Uma das personagens diz que nenhuma revolução digna desse nome deveria ter êxito.
R. Exactamente. O que eu quis dizer é que, no futuro, vamos ter revoluções violentas sem nenhum objectivo. E é bom que assim seja. É bom que não tenham nenhum verdadeiro plano, nenhum sentido. Os Lenines, os Hitleres, os Pol Pots do futuro não terão ideologia, não terão justificação.
(…)
P. A história do livro foi inspirada em algum acontecimento real?
R. Houve um caso, há cinco anos, que me fez pensar. Uma jornalista de televisão foi assassinada. Chamava-se Jill Dando, tinha 30 anos, era bonita, vivia sozinha num distrito perto de Hammersmith. Um dia, ia para casa, alguém a seguiu e a matou, com um tiro. A Scotland Yard lançou uma verdadeira caça ao homem, com centenas de agentes. Nunca descobriram quem a matou nem por que razão. Acabaram por prender um vizinho, mas ninguém duvida de que ele está inocente. Foi e continua a ser um grande mistério, sobre o qual se escreveram muitos livros, se fizeram muitos debates. Então ocorreu-me que talvez tivesse sido um crime sem sentido nenhum. Seria esse o objectivo. Crimes sem sentido têm um sentido muito próprio.
P. Por que cometeria alguém um crime sem sentido?
R. Imagine que eu tenho uma terrível discussão com o meu vizinho. Saio de casa e quebro o pára-brisas do carro dele. É compreensível. É errado, mas faz sentido. Serei multado, e o assunto está encerrado. Mas imagine que vou na rua e paro subitamente junto a um carro qualquer e desato a partir-lhe os vidros. Ninguém vai compreender. Vão perguntar: "Porquê este carro?" O polícia vai dizer: "Não vejo qual é o móbil do crime." O juiz vai perguntar: "Porque fez isto, senhor Ballard? Conhecia o dono do carro? Não? Já tinha visto este carro antes? Não? Então porquê?" Toda a gente vai pensar no assunto, e voltar a pensar.
P. Talvez pensem que se tratou do acto de um doente mental.
R. Talvez, talvez... Mas é um fenómeno muito generalizado e específico do Ocidente, desde a Segunda Guerra. Crimes sem sentido. Pessoas entram em supermercados e matam indiscriminadamente, com metralhadoras, ou bombas. Um homem na Escócia entrou numa escola e matou 15 crianças dos três aos cinco anos. Outro, aqui perto, acordou uma manhã, pegou numa Kalashnikov" e matou a mãe. Depois passeou-se pela rua e assassinou mais umas dezenas de pessoas. Por fim suicidou-se. Outro...
P. Vê um significado nesses crimes?
R. Não. Mas são cada vez mais frequentes, à medida que as nossas sociedades se tornam mais civilizadas, mais enfadonhas.
P. As pessoas matam por enfado?
R. Estão desesperadas. É como um grito de socorro. Numa sociedade totalmente saudável, a loucura é a única liberdade possível. À medida que as sociedades ocidentais se tornam mais prósperas, mais civilizadas, mais governadas por leis razoáveis, deixamos de poder tomar decisões morais.
P. Não é bom ter leis razoáveis?
R. É precisamente esse o problema. As sociedades ocidentais são muito conformistas. Estão cheias de convenções. A vida na América, na Inglaterra, Itália ou Portugal é muito idêntica. A legislação é muito boa, muito esclarecida. Todos temos de mandar os nossos filhos para a escola, dar-lhes vacinas... tratar bem as nossas esposas, conduzir a 60 km/hora, parar no semáforo vermelho...
P. São convenções que aceitamos livremente, como disse.
R. É verdade. Mas semiconscientemente vamos descobrindo que não temos liberdade. E inconscientemente precisamos de protestar. Porque já não temos oportunidade de tomar decisões morais. O bem e o mal foram roubados aos seres humanos pela primeira vez.
P. Até aqui éramos donos do bem e do mal porque vivíamos em sociedades injustas?
R. Injustas, não democráticas, repressivas. Agora temos sociedades governadas pelos princípios mais simpáticos. E estamos sufocados, não podemos respirar. Não nos é permitido fazer julgamentos morais sobre nada. A sociedade fá-los por nós. A violência sem sentido surge como a única forma de assegurarmos a nossa liberdade. Há uma necessidade desesperada, no nosso mundo, de fazermos alguma coisa que tenha alguma espécie de sentido. E as únicas coisas que parecem ter algum sentido são os actos sem sentido.
P. Faz um certo sentido...
R. Se eu achar, por exemplo, que Tony Blair levou o nosso país para uma guerra estúpida, no Iraque, e por isso decidir matá-lo – o que não seria difícil, na realidade, se estiver preparado para ser apanhado. Se o fizer, o que terei conseguido? Nada. Mas se eu for na rua e matar a primeira pessoa que me aparecer, num acto completamente sem sentido mas ao mesmo tempo misterioso... isso deixará as pessoas a pensar.
P. Assassinar Blair seria lógico e portanto sem consequências...
R. O círculo fica completo, as pessoas partem para outra coisa, não pensam mais no assunto.
(…)
P. Não se pode dizer que seja um optimista quanto à natureza e futuro da humanidade. Até que ponto a sua infância na China, durante a guerra, num campo de concentração, influenciou a sua visão do mundo?
R. Vivi em Xangai durante a ocupação japonesa, até aos 16 anos. Tive de crescer muito depressa. Aprende-se muita coisa, com essa experiência de viver, durante uma guerra, sob controlo inimigo. Ser civil e estar completamente à mercê deles. Ser uma criança e ver os pais também à mercê, inseguros. Sem terem comida para nos dar, cheios de medo. É absolutamente assustador. Ensina-nos para sempre que não podemos tomar nada por garantido. E que o mundo em que vivemos é muito mais perigoso do que parece.
P. É, de certa forma, um mundo fictício.
R. É um cenário. É assim que eu o vejo. Como um cenário de um filme, que pode ser derrubado em dez minutos, para ser substituído por outro.
P. A maioria das pessoas não tem esse pressentimento, pois não?
R. Quando cheguei a Inglaterra, depois da guerra, fiquei muito surpreendido. Então ninguém está a ver o que se passa? Senti-me um estranho aqui. E ainda hoje sinto, 60 anos depois. Parece que me apercebo de coisas que mais ninguém nota. Apetece-me dizer: "Ei, tenham cuidado!"
P. Os seus livros são isso? Avisos?
R. Acho que sim. Todos eles. É como colocar um sinal na rua a dizer: "Cuidado! Curvas perigosas mais à frente! Abrande!"

(PÚBLICO, 2004)

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