« Os que romperam com o
comunismo estalinista deixaram-nos uma grande lição, porque conservaram do
marxismo a imagem clássica e unitária do homem, uma fé no universal-humano que
por vezes se exprime, com ingenuidade, nas formas narrativas do passado. Mas a
sua humanidade, que das derrotas precoces dos sonhos havidos não concluía pela
legitimidade de uma licença intelectual irresponsável, é muito diferente da
leviandade dos actuais órfãos do marxismo, que, desiludidos por este último se
não ter revelado o «abre-te Sésamo» da história se entregam a estridentes ataques
contra aquilo que ontem ainda lhes parecia sagrado e infalível.
(…)
Ficarmos órfãos das
ideologias é natural, como o é ficarmos órfãos dos nossos pais; é um momento
doloroso, que não implica, contudo, a dessacralização do pai perdido, pois não
significa afastarmo-nos do seu exemplo. A militância política não é uma igreja
mística onde tudo está em tudo, mas um trabalho quotidiano, que não redime de
uma vez por toda a Terra e se encontra exposto a erros, mas permanecendo pronto
a corrigi-los. Também para o marxismo chegou a hora liberal desta laicidade,
que não aceita idólatras nem órfãos do Vietname, mas forma personalidades
maduras, capazes de enfrentar as desilusões sempre recorrentes. Chegou a hora
em que sair do Partido Comunista já não é a perda da totalidade e isso poderá
ser uma razão para se não sair dele. »
Claudio Magris