Decomposto o ideal iluminista do saber é poder - vertido, segundo Peter Sloterdijk, numa judiciosa receita
prática pela velha social-democracia - o que pode, hoje, a escola? Agora que a reconversão entre o
viver e o aprender anda no ar e
a retórica luzida do sapere aude moderno perdeu a sua energeia emancipatória, parece ser instante reflectir sobre as figuras do
impoder na escola actual e perguntar: o que não pode, hoje, a escola?
A velha
social-democracia anunciara o slogan «saber é poder» como uma judiciosa receita
prática. Com isso, não pensava muita coisa. Pretendia-se afirmar que uma pessoa
devia aprender qualquer coisa como deve ser, para mais tarde vir a melhorar a
sua situação. O dito era ditado por uma fé pequeno-burguesa na escola.
Essa fé está hoje em decomposição. Só entre os nossos jovens médicos cínicos há
uma linha clara que liga o curso ao nível de vida. Quase todos os outros vivem
com o risco de aprender em vão. Quem não busca o poder também não quer o seu saber,
o seu armamento de saber, e quem recusa ambas as coisas já não é secretamente
cidadão desta civilização. Inúmeros são os que já não estão dispostos a
acreditar que «começar a aprender qualquer coisa» levará mais tarde a melhorar
a sua situação. Neles, creio, cresce um antigo pressentimento que no antigo kynismós era certeza: que uma pessoa tem de começar
por ter uma vida melhor para depois poder vir a aprender qualquer coisa
razoável. A socialização pela escolarização tal como se desenvolve no nosso país
é o embrutecimento a priori, após o qual uma aprendizagem quase não
oferece perspectiva de que as coisas hão-de melhorar seja lá como for. A
reconversão da relação entre o viver e o aprender anda no ar: o fim da fé na
educação, o fim da escolástica europeia. É isso que é de igual modo temível,
tanto para os conservadores como para os pragmáticos, tanto para os voyeurs da decadência como para os
bem-intencionados. No fundo já ninguém acredita que a aprendizagem de hoje
resolve os «problemas» de amanhã; é quase certo, pelo contrário, que os
desencadeia.
Peter Sloterdijk - Crítica da Razão Cínica
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