quinta-feira, 24 de outubro de 2013

O Ano Em Que Sonhámos Perigosamente


De novo Slavoj Žižek. A Relógio D'Água, que tem vindo a editar com diligência o filósofo esloveno, publica agora O Ano Em Que Sonhámos Perigosamente. Malgrado este trabalho editorial extremoso, o meio intelectual português tem sido, genericamente, incurioso em relação à sua obra. No Expresso, Henrique Raposo apodou-o, com a habitual soltura opinativa, de Althusser do nosso tempo, e comprazeu-se nessa espécie de exprobração remissiva. Desidério Murcho, no blog da Crítica, postou sobre Žižek e a política contemporânea a partir de uma entrevista do pensador esloveno à BBC, e os automatismos de simplificação analítica revelaram a singeleza símplice dos simples. Não fosse a escrita avisada de, por exemplo, António Guerreiro, e Žižek passaria, em Portugal, por ser o filósofo pop que mistura marxismo com cultura pop e psicanálise, isto é, um psicobolche seduzido pela cultura popular. Žižek nutre, é claro, um enorme fascínio pelo cinema e, ultimamente, muitíssimo pela televisão, mas esse fascínio é muito mais do que um mero encantamento ou mal do olhar, antes a consciência do seu valor hermenêutico, doador de inteligibilidade ao mundo actual. É quase como se, di-lo Žižek a propósito da série The Wire, o Weltgeist hegeliano se tivesse deslocado, nos últimos tempos, do cinema para as séries de televisão, que, à semelhança da tragédia grega, fornecem um tipo de autorrepresentação colectiva de uma cidade e nas quais a polis põe colectivamente em cena a sua experiência. E que experiência é esta? A experiência fatalista do antigo destino, agora representado pelo poder latitudinário e anónimo das novas forças do Olimpo: as instituições pós-modernas, a economia, o mercado. Este último, aliás, testemunha, escreve-o Žižek, uma nova forma de prosopopeia em que a coisa que fala é o próprio mercado, agora visto como uma entidade mítica que reage, alerta, esclarece opiniões, etc., e até pode exigir sacrifícios como um antigo deus pagão. Por exemplo, de uma constituição.

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