terça-feira, 29 de julho de 2014

Nacional Citacionismo/Mas na Gândara também há as grandes massas orográficas dos grãos de areia, e é aí que, com desvelo minudente de microscopista, o Carlos de Oliveira...




De regresso à Gândara e a Carlos de Oliveira.
Carlos de Oliveira foi um escritor Português, Gandarês desde petiz, e fará 93 anos no dia 10 de Agosto (o facto de não ser visto há trinta anos é coisa de somenos). O romance Casa na Duna abre assim: Na Gândara, há aldeolas ermas, esquecidas entre pinhais, no fim do mundo. Nelas vivem homens semeando e colhendo, quando o estio poupa as espigas e o inverno não desaba em chuva e lama. Porque então são ramagens torcidas, barrancos, solidão, naquelas terras pobres. Mas na Gândara também há as grandes massas orográficas dos grãos de areia, e é aí que, com desvelo minudente de microscopista, o Carlos de Oliveira tenteia os astros.

DUNAS

Contar os grãos de areia destas dunas é o meu ofício actual. Nunca julguei que fossem tão parecidos, na pequenez imponderável, na cintilação de sal e oiro que me desgasta os olhos. O inventor de jogos meu amigo veio encontrar-me quase cego. Entre a névoa radiosa da praia mal o conheci. Falou com a exactidão de sempre: 
«O que lhe falta é um microscópio. Arranje-o depressa, transforme os grãos imperceptíveis em grandes massas orográficas, em astros, e instale-se num deles. Analise os vales, as montanhas, aproveite a energia desse fulgor de vidro esmigalhado para enviar à Terra dados científicos seguros. Escolha depois uma sombra confortável e espere que os astronautas o acordem». 

[Carlos de Oliveira, "Sobre o Lado Esquerdo"]

segunda-feira, 28 de julho de 2014

No Ípsilon, o jornal Público veio relembrar o que muitos sabem: a língua do humor lusófono é o português brasileiro, o português de Millôr Fernandes...





No Ípsilon, o jornal Público veio relembrar o que muitos sabem: a língua do humor lusófono é o português brasileiro, o português de  Millôr Fernandes. Millôr  também sabia que o escritor humorista  é o contorcionista da língua, que encadeia palavras, soma aliterações, verga semânticas, contorce fonemas. Por isso, nas avisadas palavras de José Alberto Braga, ele é e será lembrado como o maior humorista do século XX e começo deste em língua portuguesa (e não só). 
Hoje vou trocar o Devil`s Dictionary, de Bierce, pelas Pequenas Definições à Falta de Maiores, de Millôr, e espantar-me de novo com a definição de biquíni, essa coisa que começa de repente e acaba subitamente.


  
Apresentação
(quase) desnecessária

                                                                                                           
Chamo-me Millôr Fernandes, o que, já não sendo uma novidade, ainda não é uma elegia. Sou um homem de estatura mediana, idade mediana, inteligência mediana, razoável saúde. Nasci no Méier, subúrbio baixa-classe-média do Rio, atravessei socialmente esta cidade, e hoje vivo pegado ao Country Club - mas não se assustem que não sou sócio. Sou magro e tonto, vago e preocupado. Gostaria de ter a beleza física de um Allan Delon, o génio de Sean O'Casey e a inevitável simpatia do Pato Donald, mas como o destino poderia me ter dado a fúria negativa de um Goldwater, contento-me com o que sou.
Só uma coisa me causa mau humor: o mau humor dos outros. Sou considerado comunista por alguns reaccionários e reaccionário por alguns comunistas e todos têm razão pois sou inengajávelComo o revolucionário mexicano, trabalho por conta própriaEu mesmo faço fogo, eu mesmo grito por socorro, eu mesmo uso o extintor - não tenho salvação. Sou popular por natureza, por mais que me esforce para ser hermético e profundo. A mim, infelizmente, todos me compreendem. maior de meus orgulhos profissionais é ter sido publicado no almanaque farmacêutico da Saúde da Mulher.
Creio no racional, mas também no amor à primeira vistaCreio numa lógica de ferro, mas também no alógico, no ilógico, no sensorial, no subjectivo, no subliminalMeu lema é «tem de tudo»São precisos muitos tiques e muitos toques para fazer um mundo.
No escuro não enxergo, não entendo do que não sei, páro onde me detenho, vou e volto cheio de saudades. Pois, se fico, anseio pelo desconhecidoSe parto, rói-me a separação. Dou um boi para não entrar numa briga. Dou uma boiada para sair dela.
Sou hesitante, tenho, muitas vezes, o temor de desagradar, nem sempre sinto coragem de dizer exactamente o que penso ou tudo que penso, emprego palavras mais suaves do que o criticado mereceria, ou perco a cabeça e uso um padrão de julgamento agressivo e injusto. Sou, em suma, como todo o mundo.
Como quase todo o mundo. Pois há os duros, os verdadeiramente sábios, e há os santos. Nem por brincadeira devemos negar a existência dos privilegiados. Que existem e nos salvarão a todosNão perguntes por quem os sinos dobram.
Com esta crónica planto aqui uma bandeira que esvoace a todos os ventos da nossa triste e sufocada língua. Minha intenção é falar do circunstancial, do supérfluo, do mínimo, do dispensávelDaquilo em que nós, cariocas, somos excelentes - não a grande retórica mas a miúda conversa do pé de ouvido, se possível ouvido, ai, que nem nos ouça. Vou falar desta cidade que não entendo para esse vasto mundo de que não entendo.
Os que, por acaso, forem um dia atingidos por qualquer pedra minha, que se defendam como os lagos, na beleza indorida dos círculos concêntricos. O que eu houver dito será somente uma opinião, pessoal e duvidosaComo todo jornalista tenho a esmagadora vantagem de ver minha palavra multiplicada pelo número de exemplares do jornal em que escrevo. Mas é sempre bom lembrar: por mais potenciado que seja o que digojamais passará de uma opinião. Assusta-me influir mais do que devo - e mereço.
Estou longe de poder ou querer ser a palmatória do mundo. isso por um motivo simples: acredito que, por meu comportamento, trabalhoe modo de viverqualquer um pode-me aceitar, sem muito esforço, como um «homem-de-bem» Mas estou certo também de quese a minha vida examinada rigidamenteà luz dos códigos, eu pegaria pelo menos trinta anos de cadeia.
Enão sendo hebreu, eu beijo as plantas da mulher de Putifar.

Millôr Fernandes

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Dicionário do Mofino 32/Banco - para além da geromancia – a adivinhação do futuro através da leitura de vísceras praticada pelos arúspices – e do casamento com mulher rixosa, contrair um empréstimo num banco sempre foi uma forma excelente de antever o futuro...

Banco, s. m. Glosando Hope, a única entidade que empresta o dinheiro que pensamos não precisar a quem conseguir provar não precisar muito dele; para além da geromancia – a adivinhação do futuro através da leitura de vísceras praticada pelos arúspices – e do casamento com mulher rixosa, contrair um empréstimo num banco sempre foi uma forma excelente de antever o futuro; depois de John Galbraith ter afirmado que a maneira como os bancos ganham dinheiro é tão simples que é repugnante, os bancos engendraram mil e outras maneiras de o ganhar, especiosas e igualmente repugnantes – os produtos financeiros; instituição sortílega e taumaturga que compra e vende dinheiro e é biblicamente capaz de, depois de transformar uma depositada nota de 100 em duas de 50, fazer escafedê-lo.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Já no século XVIII os bancos suiços eram famosos, e Voltaire recomendava: Se alguma vez virdes um banqueiro suiço a saltar de uma janela, atirai-vos atrás dele. De certeza que se deverá ganhar dinheiro com isso.

É sabido e consabido: o dinheiro pode provir de bordel, das estrumeiras tóxicas do sistema financeiro internacional, do pacote de cocaína, do sangramento de povos e gentes, mas fica sempre irrepreensivelmente inodoro, incolor e insípido no mesmo lugar - os bancos. Já no século XVIII os bancos suiços eram famosos, e Voltaire recomendava: Se alguma vez virdes um banqueiro suiço a saltar de uma janela, atirai-vos atrás dele. De certeza que se deverá ganhar dinheiro com isso.

terça-feira, 22 de julho de 2014

Guia dos Perplexos/...fui acometido de um estupor catatónico que só me abandonou depois de ler o acrónimo milf na última crónica do Henrique Raposo.

Como o Sá de Miranda, m`espanto às vezes, outras m`avergonho, mas hoje, ao ouvir o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Guiné Equatorial a jurar e trejurar em Castelhano que o Presidente do seu país e ele próprio já iniciaram cursos intensivos de Português, fui acometido de um estupor catatónico que só me abandonou depois de ler o acrónimo milf na última crónica do Henrique Raposo.

domingo, 13 de julho de 2014

Dicionário do Mofino 57/Psicanálise, s.f. Forma peculiar de logoterapia em que a vida pretérita do paciente ajuda a solucionar a vida vindoura do psicanalista, mediante um processo tecnicamente designado como transferência

Psicanálise, s.f. Forma peculiar de logoterapia em que a vida pretérita do paciente ajuda a solucionar a vida vindoura do psicanalista, mediante um processo tecnicamente designado como transferência; confissão sem penitência, mas igualmente cara; segundo Bloom, Hamlet não tinha complexo de Édipo, mas Freud com certeza tinha um complexo de Hamlet e a psicanálise talvez não seja outra coisa senão um complexo de Shakespeare, o que indicia que Bloom tem, com certeza, um complexo de Freud; a depender de Zeca Baleiro,
(…)
Os psicanalistas estão fritos
Eu mesmo é que resolvo os meus conflitos
Com aspirina, amor ou com cachaça
Os gritos todos virarão fumaça
A dor é coisa que dói e que passa
Curar feridas só o tempo há-de.

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Vão perdoar-me, mas é que depois de me lembrar deste texto do Henrique Raposo, ontem publicado no Expresso Diário, e do Victor Gaspar no regaço de Herr Schäuble, em Maio de 2013, afirmo desde já para memória futura que, se a Argentina ganhar à Alemanha, serei acometido por uma alegria breve e animosa, para a qual os alemães, aliás, têm o vocábulo exacto - Schadenfreude. Raposo e Schäuble - 0/Borges – 1.

Não direi como Borges que el fútbol es uno de los mayores crímenes de Inglaterra (o autor argentino escreveu com Adolfo Bioy Casares um conto sobre a natureza delusória do futebol, intitulado berkleyanamente Esse Est Percipi), mas o enfartamento de nacionalismo hinologista e patrioteiro associado ao campeonato do mundo faz-me mal ao esprit de finesse, e, como diria o Borges, el nacionalismo sólo permite afirmaciones y, toda doctrina que descarte la duda, la negación, es una forma de fanatismo y estupidez. Ora nem mais! Mas depois do amargor deste sentimento fricativo que o Borges e eu temos pelo futebol e pelos nacionalismos, gostaria de vos falar de um sentimento mais jovial.
Vão perdoar-me, mas é que depois de me lembrar deste texto do Henrique Raposo, ontem publicado no Expresso Diário, e do Victor Gaspar no regaço de Herr Schäuble, em Maio de 2013, afirmo desde já para memória futura que, se a Argentina ganhar à Alemanha, serei acometido por uma alegria breve e animosa, para a qual os alemães, aliás, têm o vocábulo exacto - Schadenfreude. Raposo e Schäuble - 0/Borges – 1. 

quarta-feira, 9 de julho de 2014

De cada vez que invoca as estatísticas sobre a pobreza, e ao contrário da moça de Millôr que cruza as pernas com o cuidado de quem protege um instrumento de precisão...

De cada vez que invoca as estatísticas sobre a pobreza, e ao contrário da moça de Millôr que cruza as pernas com o cuidado de quem protege um instrumento de precisão, Passos Coelho cruza os dedos com tal impudência que faz ruborizar São Rubicundo. Valha-nos Deus!

terça-feira, 8 de julho de 2014

Mas continua a não haver nada para salvar – a saúde é um estado transitório que não augura nada de bom...

O dever da felicidade nas sociedades actuais, escreveu-o Pascal Bruckner, cumplicia com o dever de bem-aventurança na saúde e com o seu martirológico, a via crucis dos ginásios, das dietas, da provação da privação. Vigiar o corpo insurrecto, lugar de ameaça latente, da doença, do prazer vicioso, do excesso de peso, do insidioso colesterol, tornou-se a obsessão da ideologia da longevidade e da juventude que, di-lo Bruckner, é a ideologia das nações envelhecidas e dá do Ocidente a imagem de um serviço de geriatria. Durante séculos tentaram, debalde, salvar-nos a alma. Recusámos. Em boa verdade, não havia nada para salvar. Hoje, depois de um olhar clínico corredio ter deslizado pelo inculpante hemograma, querem resgatar-me o corpo malsão e santificá-lo por uma saúde longeva; querem o são corpo glorioso ressurrecto, do açúcar, do sedentarismo, do colesterol. Mas continua a não haver nada para salvar – a saúde é um estado transitório que não augura nada de bom e o seu maior proveito é o silêncio dos órgãos, isto é, o descaso negligente de si mesma. 

terça-feira, 1 de julho de 2014

Diário dos Perplexos/Arvorado o latrocínio em modelo profético, pergunta-se pois: a quem pertencem os pobrezinhos?

Profetizado para sobrevir numa sociedade industrializada e proletarizada, o advento do comunismo histórico, advindo como ladrão na noite, materializou-se, porém, em sociedade predominantemente agrária. Cristo foi crucificado com dois ladrões a deslado (um deles bom) e as Escrituras estão inçadas de ladroagem. Arvorado o latrocínio em modelo profético, pergunta-se pois: a quem pertencem os pobrezinhos?