domingo, 28 de novembro de 2010

Dicionário Do Mofino 6

Eternidade, s. f. Duração indefinida com demasiados tempos mortos e na qual não se pode morrer de tédio; segundo Boécio, a posse total, simultânea e perfeita de uma vida interminável, causa efficiens do temor laboral de coveiros e defunteiros; pensar sub specie aeternitatis – perspectiva aterradora quando se pensa no casamento e nos almoços de família; cientificamente, abolição da flecha do tempo e da segunda lei da termodinâmica na qual o tempus non fugit e temos demasiado tempo para pensar nisso; politicamente, o tempo de vigência do governo; prosaicamente, o tempo que falta até à aposentação.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Dicionário Do Mofino 5

Ladrão, s. m. Aquele para quem nada do que é alheio lhe é alheio; indivíduo que considera toda a propriedade de modo muito pessoal; o que tem em subidíssima consideração a noção de propriedade; para Proudhon - para quem La propriété, c'est le vol e que fez jus à afirmação plagiando-a de Brissot - , todo e qualquer proprietário; cultor de filosofia eclética que combina a apologia do despojamento material Estóica e o Fugilismo – despoja-te de tudo e não me sigas!

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Dicionário Do Mofino 4

Cidade, s. f. Lugar onde o homem, Homo Socius, deixa de ser sociável; na Grécia antiga a Pólis era lugar onde o cidadão se transmudava em Homo Loquens, isto é, num demagogo; hoje é o lugar onde o homem se transforma em Homo Demens, o mesmo é dizer, em condutor e construtor civil; lugar onde se percebe que o homem é humano, demasiado humano, não cumprimenta o vizinho e abomina o próximo na razão directa da sua proximidade; à cidade humana, demasiado humana, contrapôs Santo Agostinho a Civitate Dei – a cidade celeste –, prova cabal de que já no século V se construía em altura.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Dicionário Do Mofino 3

Sexo, s.m. Estado sensacional da existência humana; segundo a Vulgata, Deus terá proferido o Fiat primigénito ( Faça-se sexo! E o sexo foi feito - dixitque Deus fiat sexus et factum est sexus) e, embora tenha achado bom (Deus viu que o sexo era bom - et vidit Deus sexus quod esset bonum…), não logrou inteligir, porém, que era muito bom, o que gerou inenarráveis (dis)sabores, boa literatura e dois complexos arquetípicos Psicómicos – Édipo e Portnoy; Veríssimo disse que o sexo “tem que ser entre pessoas que se amam, ou se gostam, ou se respeitam, ou então não se conhecem mas não têm nada para fazer entre as seis e as oito” e, naturalmente, detestam estar paradas; o sexo pode ser considerado o "ginásio do amor", mas é sempre avisado fazer uma prova de esforço; Fiat!

sábado, 20 de novembro de 2010

Dicionário Do Mofino 2

Cultura Geral, s. f. Comummente definida como “aquilo que sobra depois de esquecermos tudo o que aprendemos”, a cultura geral é uma espécie de enteléquia, visível contudo a olho nu em concursos televisivos, inquéritos estivais e Diários das Sessões; ter cultura geral significa ter um módico de conhecimentos expresso na fórmula saber qualquer coisa de qualquer coisa e não ter qualquer pudor em alardeá-lo.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Dicionário Do Mofino 1

Tédio, s.m. Estado emocional amorável em que o crescendo varia na razão inversa da sobreocupação e o diminuendo , segundo Pessoa, na razão directa da falta de dinheiro; "Ter o dinheiro suficiente para ter tédio à vontade" é o desejo subido do homem de bom gosto, que procura tintar o ócio com umas tintas diletantes de cultura; o tédio é inimigo figadal do nec-otium e Humor em repreensível depreciação.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Erotic Flash Fiction 7

Ela achava que a culpa é a "margem existencial do sexo"; ele também. Mais tarde, descobriram que a largura da margem é um número ímpar maior do que 1 e menor do que 5.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Weird America 5 (Andrew Bird - Anoanimal)



A canção pop cria-se com a audição e não com a produção do som. Uma canção pop nunca está concluída e por isso a sua referencialidade é análoga à da parábola.

domingo, 14 de novembro de 2010

Slavoj Zizek (Made In China)


















No Expresso, Henrique Raposo apodou-o, com liberalidade, de “Althusser do nosso tempo” e comprazeu-se nessa espécie de exprobração remissiva. Desidério Murcho, no Blog da Crítica, postou sobre Zizek e a política contemporânea a partir de uma entrevista do pensador esloveno à BBC, e os automatismos de simplificação analítica revelaram a singeleza símplice dos simples. Não fosse a escrita avisada de António Guerreiro e Zizek passaria, em Portugal, por ser o filósofo pop que “mistura marxismo com cultura pop e psicanálise”, isto é, um psicobolche seduzido pela cultura popular.
Mas Zizek pensa bem. No seu último livro publicado pela Relógio de Água, Da Tragédia à Farsa, há um capítulo azado intitulado Capitalismo com Valores Asiáticos… Na Europa, no qual Zizek, invocando Lee Quan Yew - o líder de Singapura que inventou e concretizou o chamado “capitalismo com valores asiáticos” -, sugere que esta forma autoritária de Capitalismo se tem vindo a difundir por todo o globo, e assevera o seu cepticismo em relação a uma presuntiva conaturalidade de capitalismo e democracia que, realizando o primeiro, garantiria teleologicamente o segundo. Pergunta Zizek: “E se a « combinação viciosa do knout asiático e do mercado de títulos europeu » (segundo os termos da definição que Trotski propunha da Rússia czarista) se revelasse economicamente mais eficaz do que o capitalismo liberal? E se estivéssemos perante um sinal de que a democracia, tal como a entendemos, deixou de ser condição e motor do desenvolvimento económico, passando a constituir um obstáculo para ele?”

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Confiança e Medo na Cidade (Bauman e "O Senhor do Adeus")
















Figuras públicas como Rui Zink, Ricardo Sá Fernandes e Leonor Poeiras juntaram-se às cerca de duas centenas de pessoas que se concentraram no Saldanha (Lisboa) para se despedirem do "Senhor do Adeus".

Aquele acenar de mão bem como aquele sorriso pelo qual ficou conhecido João Manuel Serra, baptizado pelo povo como o "Senhor do Adeus" e que faleceu na quarta-feira, aos 79 anos, levou os lisboetas a prestar-lhe uma sentida homenagem na qual, tal como ele, disseram adeus aos inúmeros carros que por eles passavam. O objectivo final foi despedirem-se do autor desse adeus e desse sorriso gratuitos que a tantos fazia felizes. "Este está a ser o mais bonito velório a que assisti nos últimos tempos e que, provavelmente, irei assistir nos próximos", frisou, em declarações ao DN o escritor Rui Zink, que conhecia João Manuel Serra das inúmeras passagens que fazia a pé pelo Saldanha.

Público 12/11/10


O que é uma cidade? A resposta também pode ser a de Zygmunt Bauman: uma cidade é um sítio “onde os desconhecidos convivem numa estreita proximidade sem deixarem de ser desconhecidos”. Os desconhecidos, na sua diversidade multitudinária, geram um estranhamento suspeitoso, na medida em que “albergam intenções, pensamentos e modos de agir perante situações comuns que nos são desconhecidas” e, diremos nós, ameaçadoramente impreditíveis. Na medida em que os desconhecidos são “a personificação do risco” citadino, o hodierno melting pot urbano pode gerar uma “paranóia mixofóbica” adversa à variabilidade dos tipos humanos existentes nas cidades.
Porém, diz-nos Bauman, a cidade é ambivalente. Se o estranhamento do desconhecido ocorre sob o signo do risco e da suspeita, também é verdade que, intermitentemente, ocorre sob o signo da atracção e chega a fórmulas de conciliação e a apaziguadores modi convivendi. Mixofilia e Mixofobia coexistem em todas as cidades.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Weird America 4 (Repudiação, Refutação, Refudiação)



Quem não aprecia as Palinadas do novel neoconservadorismo made in USA? Sarah Palin, fazendo sábio uso da máxima que diz que "não é sábio quem sabe mais do que é preciso" - mesmo sendo presuntivo candidato a candidato à Casa Branca - fundiu Refutation e Repudiation e perpetrou o neologismo Refudiation para manifestar o desacordo quanto à construção de uma mesquita perto do Ground Zero, o que, aliás, gerou um medo pânico na comunidade islâmica de Nova Iorque e concitou de imediato à recitação das 114 suratas do Corão. É claro que refudiar é muito mais severo e assertivo do que o dialógico refutar e o protestativo repudiar. Moral da história: a direita americana forceja por arranjar uma nova linguagem e novos "topoi" retóricos, mas o resultado é sempre bafiento e risível.
Não se esqueçam, pois. Dia 24 de Novembro, dia da refudiação do Governo.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Internacional Citacionismo (Michel Houllebecq e a Aritmética da Dor)



Michel Houllebecq ganhou hoje o Goncourt com o romance La Carte et le Territoire, edição Flammarion. Uma citação neurasténica à bolina da actualidade. Para quem não acredita na Beatitude.

" Todos temos na cabeça uma perspectiva simples do futuro: virá um dia em que a soma dos prazeres físicos que podemos esperar da vida é inferior à soma das dores."

Michel Houllebecq - Les Particules Élémentaires

sábado, 6 de novembro de 2010

Gastrofilias (Rins Fritos Ainda Doces de Sangue)



Ter uma barriguinha quase cinquentenária a levedar no có das calças não é coisa de somenos. A sobredita carece de solicitude e desvelo. Mas nem sempre é fácil.E quem é capaz de reconhecer os perigos, as complicações e - porque não - a importância da demanda vital de um guloso professo?
Quem gosta de comer "come muito com a memória", a memória sinestésica dos pratos catedralícios, sápidas aparições, e que actualmente são quase só mera referência literária. Um mundo extingue-se, e hoje, no exílio, a minha demanda vital e a literatura trouxeram-me de novo aqui - à infância.

"Josefa era gulosa dos intestinos de galinha, que, depois de lavados e esvaziados, se enrolavam num pau fino de salgueiro e eram guisados como um acepipe."

Agustina Bessa Luís - A Alma dos Ricos


"Sabor mijão dos rins fritos ainda doces de sangue."

Vitorino Nemésio – Mau Tempo no Canal

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Weird America 3 ( Sufjan Stevens - Casimir Pulaski Day )



Sufjan Stevens é um versátil compositor e cantor americano que se propôs fazer um disco para cada um dos 50 estados americanos. O primeiro da série, “50 States Project”, foi Michigan (2003) e, em 2005, Illinois ( Come on Feel the Illinoise) entrou na lista US Heatseekers da Billboard e o seu sortilégio pairou sobre todas as listas dos melhores do ano. Ainda que o projecto “50 States Project” seja um desaire - estás doido, man! -, Sufjan Stevens já ganhou o Olimpo por Casimir Pulaski Day: a canção triste que irei trautear se o Maligno me apanhar.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Erotic Flash Fiction 6

Era uma virago sanguínea e desbocada. Ele gostava. Mas na cama ela espiritualizava-se e, amiúde, ciciava: - "Deleita-me! Deleita-me!". Ele, incrédulo e frustrado com o atalho da memória, acabava sempre por relembrar o Salmo 37:4.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Nacional Citacionismo (Dedicácias)



Lisboa, 2 de Novembro de 1919 — Santa Barbara, Califórnia, 4 de Junho de 1978



Sabe de Hegel, de Sartre, de fenomenologia
mas andou na Rua da Sofia.

É inteligente, arguto, viajado
mas vive sempre com a aldeia ao lado.

Que há nestes portugueses que é como um sarro azedo,
um cheiro de vinagre ou carrascão de medo,
a que se agarram quais lapas ao Penedo

da Saudade? Não há filosofia
que salve quem andou na Rua da Sofia.

Jorge de sena - Dedicácias

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

A Identidade dos Indiscerníveis: Homo Oeconomicus Versus Homo Politicus



Assinale-se: os empresários portugueses do “liberal turn” têm uma atitude esquizóide perante a obesidade mórbida do grande Leviatão, o Estado: defendem a indispensável ideia de que a primeira função do estado é tornar-se dispensável, mas são useiros e vezeiros no clamor pelo beneficiozinho fiscal, o fundo perdido, a subvençãozinha providencial.

Assinale-se: os políticos portugueses do “liberal turn” têm uma atitude esquizóide perante a obesidade mórbida do grande Leviatão, o Estado: defendem a indispensável ideia de que a primeira função do estado é tornar-se dispensável, mas são useiros e vezeiros na concessão do beneficiozinho fiscal, do fundo perdido, da subvençãozinha providencial.

Para o homo politicus a política é continuação dos negócios por outros meios.

Para o homo oeconomicus o negócio é a continuação da política pelos sobreditos meios.

Aqui no terrunho, o Homo Oeconomicus e o Homo Politicus são o Dupont e Dupond da esfera pública, o Estado é (d)eles, e nem a forma do bigode permite distingui-los.