sábado, 30 de outubro de 2010

Literatura e Mundos Possíveis - A Ilha dos Filósofos
























Omne possible exigit existere
(Todo o possível exige existir)
Leibniz


O que é a ficção? A literária e a outra? A literatura é um “modo de fazer mundos” possíveis, artifícios verosímeis mas irreais? Se os limites do meu mundo são os limites da minha linguagem, a linguisticidade radical da literatura deslimita a realidade ficcionando-a? E os mundos da ficção, as suas personagens, factos, lugares? Qual o seu estatuto ontológico? Em que sentido são reais ou irreais?
Para o realismo modal todos os mundos possíveis são reais, e muitos desses mundos são análogos aos nossos, exceptuando o facto de não os vermos como sendo actuais. Realidade e actualidade são coisas diferentes. A realidade é muito mais extensa, recobrindo todas as possibilidades em todos os mundos possíveis. É actual o mundo em que as possibilidades, os possibilia, se tornam actuais. Consideramos actual o mundo que habitamos. Os habitantes de outros mundos pensarão também nos seus mundos como sendo actuais.

A geografia da ficção obsidia-nos. Pouco dado a viagens, tenho duas cidades e uma ilha a visitar: Rivendell e as Terras do Meio, Argia e a Ilha dos Filósofos. Que esta geografia seja mera possibilia, para usar a terminologia de do realismo modal, é um obstáculo de somenos importância. E para além do mais, como dizia Borges, não sabemos se o universo, este universo, “ pertence ao género realista ou ao género fantástico”.

"FILÓSOFOS, ilha dos (1)

Uma das Ilhas Altas vizinhas da Terra do Fogo, notável pela sua arquitectura. Começando pelo telhado, sempre bastante elaborado, aí constroem os filósofos vastos edifícios chamados sistemas. Chegados à fase das fundações, a construção desaba matando o arquitecto.
Os filósofos ocupam o mais precioso do seu tempo a pesar o ar, a comparar duas gotas de água ou a conceber definições, isto é, a substituir uma palavra por muitas outras que querem dizer a mesma coisa.
A ilha está coberta de neves eternas, e as estradas são execráveis.O visitante perder-se-á facilmente.

* Pierre François Guyot, abbé Desfontaines, Le Nouveau Gulliver ou Voyage de Jean Gulliver, fils du capitaine Gulliver. Traduit d`un manuscrit anglois, par M. L`abbé de L. D. F., Paris, 1730."

THE DICTIONARY OF IMAGINARY PLACES - Alberto Manguel/Gianni Guadalupi

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

FMI:Internacionalismo Monetário (Ei-lo!)




O problema das profecias sempre foi o facto singelo de dependerem do futuro. Mas não sejam incautos. Atenção às profecias autopoiéticas.
O Internacionalismo possível concretiza-se. Monetaristas de toda a Europa (e António Borges), uni-vos!

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Martha Nussbaum - O Que É Preciso Saber?

“ Em 26 de Abril passado, a universidade de Middlesex, a norte de Londres, anunciava o encerramento, por razões económicas, do seu reputado departamento de Filosofia. A mobilização dos estudantes, de grandes figuras intelectuais do mundo inteiro – Judith Butler, Etienne Balibar, Noam Chomsky, Toni Negri, Jacques Rancière, Peter Sloterdijk e Slavov Zizek, designadamente – acabou por produzir efeitos. O departamento não vai desaparecer, apenas será transferido para outro estabelecimento, a universidade de Kingston.”

Courrier Internacional, Setembro 2010


O Courrier Internacional, edição portuguesa, publicou uma versão condensada do primeiro capítulo do livro Not For Profit: Why Democracy Needs Humanities, no qual a filósofa norte-americana Martha Nussbaum pleiteia a causa das Humanidades e reclama a sua presença nos sistemas educativos das democracias. Nussbaum convoca o apólogo Socrático “Uma vida não questionada não vale a pena ser vivida”, salientando que só as Artes e Humanidades permitem a “avaliação dos dados históricos”, a “comparação de diferentes concepções de justiça”, a “avaliação das grandes religiões do mundo”, enfim, um pensamento crítico-argumentativo virtuoso, virtude maior das democracias.
Fernando de Bulhões, vulgo santo António, escreveu que “ não é sábio quem sabe mais do que é preciso”. Mas o saber sobre “o que é preciso” aprender e ensinar carece de uma reflexão filosófica não trivial, para além das orientações políticas liberais do sistema de ensino das democracias (o Infognosticismo do Ministério da Educação, em Portugal, é um exemplo risível), que, soçobrando na voragem dos mercados mundiais, menorizam as Letras, minguam os já depauperados orçamentos dos departamentos de Artes e Humanidades, consideram supérfluos e ociosos todos os saberes que não se concretizem numa estrita techné.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Gainsbourg - Dieu Est Un Fumeur de Havanes




Os Gitanes acabaram. Que importa, se Deus é um fumador de Habanos.

domingo, 24 de outubro de 2010

Erotic Flash Fiction 5

Acabaram na cama. E como todos os animais ficam tristes depois do coito, ela invocou um espírito mofino e disse: - “O sexo é a melhor diversão que já tive, sem me rir.” E tristeza dele mexeu-se como um corpo no escuro.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Les Enragés



No dia 29 de Abril de 2007, num comício em Bercy, Sarkozy exortou os seus apoiantes a “liquidar a herança de Maio de 68”. Mas o “psicodrama” - como lhe chamava Raymond Aron - deixou um rasto indelével e, para além da insurreição intelectual, o “psicodrama” engendrou a maior greve operária da história de França e a sua narrativa perene. Mas a política está de regresso e um Espírito travesso paira sobre a Europa: político, gaulês, chauvinista, cartesiano, jacobino, racaille, voltairiano, rousseauniano, gastrófilo, amante do mot d'esprit e da barricada.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Nacional Citacionismo 2 (Agustina, Freud e os Telemóveis)

No pregresso dia 15 Agustina Bessa Luís fez 88 anos. Leituras públicas e efusões privadas assinalaram o aniversário.Um lembrete, a destempo, sobre as coisas espantosas que Agustina escreveu.

"O telemóvel tomou o lugar da intimidade em que a carícia e o olhar são uma forma de maturidade sexual. Objecto masturbante, o telemóvel é um traço arcaico do neurótico e, por isso, tão rapidamente adoptado. Não podendo ser um condutor do pensamento, ganhava em popularidade por dar um conhecimento acessório sobre os sonhos e a vida quotidiana."

Agustina Bessa Luís - O Princípo da Incerteza

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Weird America 2 (CocoRosie - By Your Side)



Naturalmente dedicado à empowered girl Camille Paglia, cuja “filosofia” - asseveram alguns – combina “Madonna, pornografia, Jean-Jacques Rousseau e Freud” numa garrida e festiva ars combinatoria.

“ I want to empower the woman who wants to say, I'm tired of this and I want to go home."

Camille Paglia - Playboy


CocoRosie

By Your Side

I'll always be by your side
Even when you're down and out
I'll always be by your side
Even when you're down and out
I just wanted to be your housewife
All i wanted was to be your housewife
I'll iron your clothes
I'll shine your shoes
I'll make your bed
And cook your food
I'll never cheat
I'll be the best girl you'd ever meet
And for a diamond ring
I'll do these kinds of things
I'll scrub your floor
Never be a bore
I'd tuck you in
I do not snore
I'd wear your black eyes
Bake you apple pies
I won't ask whys
And i try not to cry
I'll always be by your side
Even when you're down and out
I'll always be by your side
Even when you're down and out
And its nearly midnight
And all i want with my life
Is to be a housewife
Is to be a housewife
'Cause it's nearly midnight
And all i want with my life
Is to die a housewife
Is to die a housewife

domingo, 17 de outubro de 2010

Turismo e Viagens: as Grandes Evasões Bárbaras 2



Como pensar o turismo, filosoficamente? A questão, deveras “pop philosophy”, foi lançada pela revista Philosophie a Frédéric Nef, Director de estudos em Ehess, membro do Instituto Nicod e do Instituto Marcel Mauss, filósofo francês com perambulações árduas nas muito anglófilas áreas da Ontologia , Lógica e Metafísica.

Duas nótulas sobre a entrevista:

Primeiro: O turismo é uma “experiência metafísica de rompimento com o quotidiano fundada no espanto”. O espanto (Thaumaston), sabemos desde os gregos, é a conversão do olhar que predispõe e concita à filosofia. Toda a filosofia nasce “do espelho do olho” e toda a experiência da viagem é, congenialmente, uma experiência filosófica.

Segundo: Existem diferentes formas de turismo:
- A viagem de recreação a destinos exóticos, na qual, estranhamente, nenhum espanto e estranhamento é já possível, devido à saturação imagética dos travel channels, da publicidade das agências, do documentarismo geográfico, do barbarismo invasivo do turismo.
- O turismo elegíaco e memorial , que visa propiciar uma tomada de consciência emocional identitária, a busca de um rasto, a reverberação de um acontecimento arquetípico.
- O turismo psicológico, fascinado pela procura e descoberta dum centro espiritual e a refundação e "busca narcísica de si próprio".
- O Heimatturismus, o turismo do país natal e o retorno fruste a um espaço-tempo primevo e inaugural.
- O turismo hiperreal do real negativo simulado, em que é possível ser um mexicano a realizar a caminata nocturna para os EUA, um chinês nas aldeias recém destruidas de Sichuan, um palestiniano em Gaza nos dias de bombardeamento.

Ora, depois de ler tão douto arrazoado e a caminho do sofá, lembrei-me do Lawrence Sterne de “Uma Viagem Sentimental” que, mofino, escreveu:

“Os ociosos que deixam o país natal vão para o estrangeiro por alguma razão ou razões que se podem derivar de uma destas causas gerais –
Enfermidade do corpo,
Imbecilidade do espírito, ou
Necessidade inevitável.”

Sentei-me e aqui jazo.

sábado, 16 de outubro de 2010

Internacional Citacionismo (Leituras da Crise)



Tenho um amigo que se compraz amiúde em pronunciar alto o nome de um governante e, quando a retentiva lhe acende a catadura do ministro ou sucedâneo no hemisfério lateral direito, rir desbragadamente. Joseph Conrad fazia o mesmo para se livrar da neurastenia. Dois sages homens sérios, o meu amigo e Joseph Conrad.

"Claro que o governo em geral, qualquer governo em qualquer lado, é uma coisa de comicidade excelente para uma mente inteligente."

Joseph Conrad - Nostromo

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Erotic Flash Fiction 4

Abriu a página 269 do Pastoral Americana e leu: “A fenda, como que feita à sovela, aquele entalhe minuciosamente biselado, que se abrirá em pétala, evoluindo, no ciclo do tempo, para uma vagina de mulher pregueada como um origami.” Depois, sopesou a semântica e pensou na aula de alemão. Handwerk.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Jornalismo Rasante, Planante, Flanante...



Do que falamos quando falamos de um comentador televisivo? De um prêt-à-penser munido de uma visão panóptica sobre o real social? De um especialista em generalidades que sobrepaira sobre os temas instantes em vôo planante?
O que dizer do jornalismo televisivo? Do seu saber formular e lacunar? Da sua univocidade? Do seu descaso da complexidade? Da sua impreparação?
O que se passa com os jornalistas? Karl Kraus responderia: “Ausência de ideias e a habilidade para o expressar.”

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Weird America 1 ( Animal Collective, My Girls)

Em Agosto de 2003, a canónica revista Wire fez capa com aquilo que definiu como "New Weird America", rótulo cunhado por David Keenan para crismar nomes como Devendra Banhart, Joanna Newson, Animal Collective, Sunburned Hand of The Man; No-Neck Blues Band, CocoRosie.
Animal Collective,o meu specimen preferido.

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segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Internacional Citacionismo (Viajar: As Grandes Evasões Bárbaras)


"O turismo é o grande soporífero. É um enorme conto do vigário e dá às pessoas a ideia perigosa de que existe alguma coisa interessante nas suas vidas."

"Viajar é a última fantasia que o século XX nos deixou, a ilusão de que ir a algum lado nos ajuda a reinventarmo-nos."

"Todas estas viagens? Convenhamos, são uma ilusão. Viajar de avião, toda esta coisa de Heathrow, é uma fuga colectiva da realidade. As pessoas vão até aos balcões do check-in e por uma vez nas suas vidas sabem para onde vão. Pobres bestas, está impresso nos bilhetes."

J.G.Ballard - Gente do Milénio

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Hegel e a Oração Diária do Homem Moderno



Santo Anselmo acreditava numa fé "iluminada" pelo intelecto (Fides Quaerens Intellectum), e o diálogo agónico entre Fé e Razão, Religião e Ciência - actualizado presentemente pelo pastor alemão Bento XVI - sempre foi um topos dilecto e dialéctico do discurso teológico. Mas o naturalismo da ciência moderna, depois de expulsar Deus do Cosmos, tinha remetido a sua presuntiva existência para a antecâmara do Big Bang. Mas, contrariamente à razão teológica, a razão científica sempre fez profissão de fé no credo Occamiano, que diz "não devermos multiplicar as entidades para além do necessário" (entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem), e a parcimoniosa navalha de Occam até do grau zero do espaço-tempo o desalojou. Ei-lo agora na Imprensa, lugar onde o verosímil é mais verdadeiro do que o real.

Os Evangelhos e a Teologia trouxeram a Boa Nova, mas a “oração diária do homem moderno” – a leitura do jornal, (pace,Hegel!) – acabaria por trazer a Má. Finalmente esclarecido o mais gritante caso de ausência e absent(e)ismo na História Natural. Ponto final? Reticências?

terça-feira, 5 de outubro de 2010

O Passamento do Farsista (segundo Marx)

Nas vascas da agonia, um farsista compulsivo gritava excruciante e trágico - “ Eis que morro!”. Lembrou-se, porém, de Marx: “A história acontece como tragédia e repete-se como farsa.” Calou-se e reencarnou.

O Passamento do Frasista (segundo Borges)

Nas vascas da agonia, um frasista compulsivo ciciava a frase derradeira e imorredoira. Lembrou-se, porém, de Borges: “Salvo nas severas páginas da história, os factos memoráveis prescindem das frases memoráveis.” Calou-se e passou-se.

sábado, 2 de outubro de 2010

"Em verdade vos digo, Samuel Úria é tão bom que devia ser proibido"



" Se António fundia Braga e Nova Iorque, Samuel atravessa Dylan e Paião, Vitorino e Waits. Se Variações soube pôr mundo no Minho, Úria põe este mundo no outro, e o outro neste, e tudo em breves canções orelhudas. Mas, por favor, nada de mal-entendidos. Este artista é de sínteses, não é sintético. Isto é música muito humana, de carne e osso, verdadeira e impura, cordas, respirações, arranhões, falsetes. Um cantautor a sério a brincar com o seu tesouro. O quê, nomes, História? Bem, vamos a isso: Zeca Afonso, António Variações, Sérgio Godinho e – Samuel Úria. Sim, isso mesmo. E não, não é nenhum “por exemplo”.
(...) Em verdade vos digo, Samuel Úria é tão bom que devia ser proibido. Ele compõe, escreve, toca, canta, teatra, arranja, dispara mais rápido que qualquer sombra, faz tanto e tudo bem. Mais que bem, brilhantemente, incrivelmente, genialmente, despretensiosamente. Mas, pois, não me puxem pelo advérbio."

Jacinto Lucas Pires

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Internacional Citacionismo (Leituras da Crise)



Em 2003 Ballard publicava Millennium People e augurava a rebelião da classe média londrina, num simulacro de distopia urbana "onde os actos desprovidos de significado são os únicos que parecem ter significado".
Mas mesmo quando a rebelião estava iminente, sobejava sempre uma minúcia middle class: a que horas é que se almoça?

" As classes médias pretendem ser a âncora social, todo aquele sentido do dever e responsabilidade. Mas os cabos estão a esticar. As qualificações profissionais não valem nada - um curso de humanidades é como um diploma de origami. Quanto à segurança é inexistente. Um computador qualquer nas finanças decide que as taxas de juro sobem um ponto e eu devo ao banco outro ano de trabalho árduo."

J.G.Ballard - Gente do Milénio