quarta-feira, 28 de março de 2012

O Mago do Riso Absoluto (1924-2012)





Todos sabem: a língua do humor lusófono é o português brasileiro, o português de  Millôr Fernandes. Millôr  também sabia que o escritor humorista  é o contorcionista da língua, que encadeia palavras, soma aliterações, verga semânticas, contorce fonemas. Por isso, nas avisadas palavras de José Alberto Braga, ele é e será lembrado como o maior humorista do século XX e começo deste em língua portuguesa (e não só). 
Hoje vou trocar o Devil`s Dictionary, de Bierce, pelas Pequenas Definições à Falta de Maiores, de Millôr, e espantar-me de novo com a definição de biquíni, essa coisa que começa de repente e acaba subitamente.


  
Apresentação
(quase) desnecessária

                                                                                                           
Chamo-me Millôr Fernandes, o que, já não sendo uma novidade, ainda não é uma elegia. Sou um homem de estatura mediana, idade mediana, inteligência mediana, razoável saúde. Nasci no Méier, subúrbio baixa-classe-média do Rio, atravessei socialmente esta cidade, e hoje vivo pegado ao Country Club - mas não se assustem que não sou sócio. Sou magro e tonto, vago e preocupado. Gostaria de ter a beleza física de um Allan Delon, o génio de Sean O'Casey e a inevitável simpatia do Pato Donald, mas como o destino poderia me ter dado a fúria negativa de um Goldwater, contento-me com o que sou.
Só uma coisa me causa mau humor: o mau humor dos outros. Sou considerado comunista por alguns reaccionários e reaccionário por alguns comunistas e todos têm razão pois sou inengajável. Como o revolucionário mexicano, trabalho por conta própria. Eu mesmo faço fogo, eu mesmo grito por socorro, eu mesmo uso o extintor - não tenho salvação. Sou popular por natureza, por mais que me esforce para ser hermético e profundo. A mim, infelizmente, todos me compreendem. o maior de meus orgulhos profissionais é ter sido publicado no almanaque farmacêutico da Saúde da Mulher.
Creio no racional, mas também no amor à primeira vista. Creio numa lógica de ferro, mas também no alógico, no ilógico, no sensorial, no subjectivo, no subliminal. Meu lema é «tem de tudo». São precisos muitos tiques e muitos toques para fazer um mundo.
No escuro não enxergo, não entendo do que não sei, páro onde me detenho, vou e volto cheio de saudades. Pois, se fico, anseio pelo desconhecido. Se parto, rói-me a separação. Dou um boi para não entrar numa briga. Dou uma boiada para sair dela.
Sou hesitante, tenho, muitas vezes, o temor de desagradar, nem sempre sinto coragem de dizer exactamente o que penso ou tudo que penso, emprego palavras mais suaves do que o criticado mereceria, ou perco a cabeça e uso um padrão de julgamento agressivo e injusto. Sou, em suma, como todo o mundo.
Como quase todo o mundo. Pois há os duros, os verdadeiramente sábios, e há os santos. Nem por brincadeira devemos negar a existência dos privilegiados. Que existem e nos salvarão a todos. Não perguntes por quem os sinos dobram.
Com esta crónica planto aqui uma bandeira que esvoace a todos os ventos da nossa triste e sufocada língua. Minha intenção é falar do circunstancial, do supérfluo, do mínimo, do dispensável. Daquilo em que nós, cariocas, somos excelentes - não a grande retórica mas a miúda conversa do pé de ouvido, se possível ouvido, ai, que nem nos ouça. Vou falar desta cidade que não entendo para esse vasto mundo de que não entendo.
Os que, por acaso, forem um dia atingidos por qualquer pedra minha, que se defendam como os lagos, na beleza indorida dos círculos concêntricos. O que eu houver dito será somente uma opinião, pessoal e duvidosa. Como todo jornalista tenho a esmagadora vantagem de ver minha palavra multiplicada pelo número de exemplares do jornal em que escrevo. Mas é sempre bom lembrar: por mais potenciado que seja o que digo, jamais passará de uma opinião. Assusta-me influir mais do que devo - e mereço.
Estou longe de poder ou querer ser a palmatória do mundo. E isso por um motivo simples: acredito que, por meu comportamento, trabalho, e modo de viver, qualquer um pode-me aceitar, sem muito esforço, como um «homem-de-bem» Mas estou certo também de que, se a minha vida examinada rigidamente, à luz dos códigos, eu pegaria pelo menos trinta anos de cadeia.
E, não sendo hebreu, eu beijo as plantas da mulher de Putifar.

Millôr Fernandes

terça-feira, 27 de março de 2012

Desaforismos do Mofino


“Quem anda sempre com um martelo na mão, tudo lhe parece um prego.”

Pedro Passos Coelho – Primeiro-ministro de Portugal (aforismo extraído da sua obra de inspiração nietzschiana o Crepúsculo do Estado Social ou Como Governar com o Martelo)

quarta-feira, 21 de março de 2012

Senhoras e Senhores - The Library of Unwritten Books




Christopher Hitchens, o verrinoso, dizia que toda a gente tinha um livro dentro de si mas, na maioria dos casos, era aí que devia permanecer. Mas rejubilai, rejubilai aqueles que têm um livro dentro de si e têm medo de o cometer, pois é deles o reino da biblioteca Brautigan, em Vermont.  A Biblioteca Brautingan, para além de reunir manuscritos recusados pelas editoras -  celebérrimos alguns, discretíssimos outros -  tem também a Library of Unwritten Books, uma colecção de livros em potência, compilada a partir de pequenas entrevistas a pessoas que sonham  escrever um livro e já o tenham, vãmente,  a levedar dentro de si.
Enrique Vila Matas, no festejadíssimo Bartleby & Companhia, chama à Biblioteca Brautingan a Biblioteca do Não, mas sobre este literário Não facto Não me arrancam uma palavra.

terça-feira, 20 de março de 2012

Peter Singer /O peso de uma pessoa só a ele ou a ela diz respeito?



«Estamos a ficar mais gordos. Na Austrália, nos Estados Unidos e em muitos outros países tornou-se comum ver pessoas tão gordas que bamboleiam em vez de andar. O aumento da obesidade é mais abrupto no mundo desenvolvido, mas está também a ocorrer nos países pobres e de rendimento médio.


O peso de uma pessoa só a ele ou a ela diz respeito? Devemos simplesmente tornar-nos mais tolerantes quanto à diversidade de formas corporais? Não me parece. A obesidade é um assunto ético, porque um aumento de peso em alguns impõe custos nos outros.

Estou a escrever isto num aeroporto. Uma franzina mulher asiática registou-se num voo com, calculo, cerca de 40 quilogramas (88 libras) de malas e caixas. Ela vai pagar a mais por exceder o peso permitido. Um homem que pese pelo menos 40 quilos a mais do que ela, mas cuja bagagem esteja dentro do limite, não paga nada. E no entanto, em termos do consumo de combustível do avião, não há diferença se o peso extra é relativo a bagagem ou a gordura corporal.»


Peter Singer


A saúde já não é o mero silêncio dos órgãos. A sua maior virtude e glória - o descaso íntimo de si própria, um corpo jovial – já não basta. A saúde é um templo de mil zelos e desvelos em que os zelotas cuidam dos templos próprios e alheios. A Organização Mundial de Saúde definiu-a como um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doenças, definição que, se não descreve um estado de quase beatitude, é todo um programa de Biopolítica e Bioética da Saúde.
Mas retornemos às questões de Singer: o peso de uma pessoa só a ele ou a ela diz respeito? Devemos tornar-nos mais tolerantes quanto à diversidade de formas corporais? As questões têm a clareza meridiana da filosofia anglo-saxónica, mas o território problematológico no qual se inscrevem – o corpo como lugar agónico da política -  é território  continental reconhecível. Em La Naissance de la Médicine Sociale (1974), Foulcaut escrevia: «O controlo da sociedade sobre os indivíduos não se efectua somente pela consciência ou o ideológico, mas também no corpo e pelo corpo. Para a sociedade capitalista é o biopolítico que importava antes de mais, a biologia, o somático, o corporal. O corpo é uma realidade biopolítica; a medicina é uma estratégia biopolítica.»




quinta-feira, 15 de março de 2012

Filosofia da caminhada




Caminhar, estar a caminho, é a imagem dilecta e movente da inquietação intelectual no Ocidente. Do ambular peripatético na Stoa aos Caminhos da Floresta de Heidegger, cruzando o ambulare pro deo medievo, caminhar é dar-se tempo e dar tempo ao pensamento. Perante a hodierna fome pandémica de tempo e os paradoxos da aceleração do ritmo de vida – de cada vez que esperamos que as novas tecnologias nos dêem tempo, fazemos a experiência do contrário – caminhar parece ser a lentidão possível.

« As caminhadas longas têm a virtude do esquecimento: esquecidos os frenesins do mundo dito “civilizado”, as ilusões do progresso técnico, as comédias sociais. Caminhar é exactamente dar-se tempo para ir de um lugar a outro. Ou melhor: dar-se o tempo. O dom faz-se acompanhar de uma libertação do espaço. Uma paisagem, se não for reduzida a uma imagem instantânea, a uma olhadela, carece, para ser compreendida, da sua distensão. São os passos do caminhante que distendem a paisagem, como um pergaminho que se desenrola suavemente sem que nenhum canto se dobre e oculte uma letra, um sentido. A caminhada é a experiência de um tempo libertador de espaço, mas também libertador das obrigações sociais – fazer isso - , das injunções de identidade – ser aquilo. Instala uma feliz monotonia que é o contrário do tédio, vazio, opressivo. O tempo das caminhadas tem a plenitude das paisagens abertas.»

Hartmut Rosa


segunda-feira, 12 de março de 2012

Os ateus vão à missa



O filósofo britânico Alain de Botton propôs que se erigisse no coração de Londres um monólito de betão e vidro com 46 metros de altura e que seria um templo do ateísmo. Robespierre não foi somente ditador, tornou-se papa, sublinha o historiador republicano Edgar Quinet (1803-1875) a propósito dos decretos do revolucionário que impunham o culto da razão e do ser supremo. Habemus Bottonam?

Philosophie Magazine


Deus está morto mas o seu cadáver permanece insepulto, dizia Nietzsche. Mas há sempre mil defunteiros -   que esquecem que morrer é não ser visto -  a querer erigir-lhe o seu Mausoléu de Halicarnasso.

segunda-feira, 5 de março de 2012

O que é um professor?



Por mais que transformem os professores num híbrido eduquesmente modificado em psicopedagogo, tecnopedagogo, manga-de-alpaca, zelota da assiduidade discente, animopedagogo, ama-seca, um professor é um professor, um professor, um professor… isto é, alguém que estuda e ensina. Nos últimos anos, a burocratização da profissão docente, a sobrecarga horária e a vulgata das esotéricas ciências comummente conhecidas como Ciências da Educação, fizeram esquecer que um professor é um estudante que ensina outros estudantes, e que o mais eficaz instrumento pedagógico é uma sólida preparação científica, haurida em muitas horas de estudo e reflexão. Desgraçadamente nada disto parece importar, e o arremedo de avaliação e formação docentes nas escolas, que menorizam a valia da proficiência científica (dos avaliandos, dos avaliadores, dos formandos e dos formadores), parecem provar e fazer jus ao "quem sabe faz, quem não sabe ensina” de Bernard Shaw.
Por decoro, não perguntem aos professores quantos livros lêem por mês ou qual é, genericamente, o state of the art da sua área de docência. É muito provável que não tenham lido nenhum e citem bastamente trivialidades em psicopegagogês, a novilíngua da escola que não estuda, não lê e não pensa.
Relembrando que um professor é um professor, um professor, um professor…, isto é, alguém que estuda e ensina, o filósofo José Gil, um dos 25 pensadores da actualidade segundo a Nouvel Observateur, escreveu hoje no Público: “… se não se souber o número de horas e a qualidade do tempo de que um docente precisa para preparar as lições podemos criar uma carga horária deprimente e esmagadora. E nunca obter uma docência de excelência. Para preparar as aulas os professores têm de ter uma vida própria – e já não têm. Têm cada vez menos férias, cada vez menos tempo para ser pessoas. Uma das questões que coloco é se os responsáveis políticos se dão conta da especificidade da profissão docente.”

sexta-feira, 2 de março de 2012

Para que serve a escola?



Decomposto o ideal iluminista do saber é poder - vertido, segundo Peter Sloterdijk, numa judiciosa receita prática pela velha social-democracia -  o que pode, hoje, a escola? Agora que a reconversão entre o viver e o aprender anda no ar e a retórica luzida do sapere aude moderno perdeu a sua energeia emancipatória, parece ser instante reflectir sobre as figuras do impoder na escola actual e perguntar: o que não pode, hoje, a escola? 

A velha social-democracia anunciara o slogan «saber é poder» como uma judiciosa receita prática. Com isso, não pensava muita coisa. Pretendia-se afirmar que uma pessoa devia aprender qualquer coisa como deve ser, para mais tarde vir a melhorar a sua situação. O dito era ditado por uma fé pequeno-burguesa na escola. Essa fé está hoje em decomposição. Só entre os nossos jovens médicos cínicos há uma linha clara que liga o curso ao nível de vida. Quase todos os outros vivem com o risco de aprender em vão. Quem não busca o poder também não quer o seu saber, o seu armamento de saber, e quem recusa ambas as coisas já não é secretamente cidadão desta civilização. Inúmeros são os que já não estão dispostos a acreditar que «começar a aprender qualquer coisa» levará mais tarde a melhorar a sua situação. Neles, creio, cresce um antigo pressentimento que no antigo kynismós era certeza: que uma pessoa tem de começar por ter uma vida melhor para depois poder vir a aprender qualquer coisa razoável. A socialização pela escolarização tal como se desenvolve no nosso país é o embrutecimento a priori, após o qual uma aprendizagem quase não oferece perspectiva de que as coisas hão-de melhorar seja lá como for. A reconversão da relação entre o viver e o aprender anda no ar: o fim da fé na educação, o fim da escolástica europeia. É isso que é de igual modo temível, tanto para os conservadores como para os pragmáticos, tanto para os voyeurs da decadência como para os bem-intencionados. No fundo já ninguém acredita que a aprendizagem de hoje resolve os «problemas» de amanhã; é quase certo, pelo contrário, que os desencadeia.

Peter Sloterdijk - Crítica da Razão Cínica