Todos sabem: a língua do humor lusófono é o português brasileiro, o português de Millôr Fernandes. Millôr também sabia que o escritor humorista é o contorcionista da língua, que encadeia
palavras, soma aliterações, verga semânticas, contorce fonemas. Por isso, nas
avisadas palavras de José Alberto Braga, ele é e será lembrado como o maior
humorista do século XX e começo deste em língua portuguesa (e não só).
Hoje vou trocar o Devil`s Dictionary, de Bierce, pelas Pequenas Definições à Falta de Maiores, de Millôr, e espantar-me de novo com a definição de biquíni, essa coisa que começa de repente e acaba subitamente.
Hoje vou trocar o Devil`s Dictionary, de Bierce, pelas Pequenas Definições à Falta de Maiores, de Millôr, e espantar-me de novo com a definição de biquíni, essa coisa que começa de repente e acaba subitamente.
Apresentação
(quase) desnecessária
Chamo-me
Millôr Fernandes, o que, já não sendo uma novidade, ainda não é uma elegia. Sou
um homem de estatura mediana, idade mediana, inteligência mediana, razoável saúde.
Nasci no Méier, subúrbio baixa-classe-média do Rio, atravessei socialmente esta
cidade, e hoje vivo pegado ao Country Club - mas não se assustem que não sou
sócio. Sou magro e tonto, vago e preocupado. Gostaria de ter a beleza física de
um Allan Delon, o génio de Sean O'Casey e a inevitável simpatia do Pato Donald,
mas como o destino poderia me ter dado a fúria negativa de um Goldwater, contento-me
com o que sou.
Só uma coisa
me causa mau humor: o mau humor dos outros. Sou considerado comunista por
alguns reaccionários e reaccionário por alguns comunistas e todos têm razão pois
sou inengajável. Como o revolucionário mexicano, trabalho
por conta própria. Eu mesmo faço fogo, eu mesmo grito por
socorro, eu mesmo uso o extintor - não tenho salvação. Sou popular por
natureza, por mais que me esforce para ser hermético e profundo. A mim,
infelizmente, todos me compreendem. o maior de meus orgulhos profissionais é ter sido publicado no almanaque
farmacêutico da Saúde da Mulher.
Creio no
racional, mas também no amor à primeira vista. Creio
numa lógica de ferro, mas também no alógico, no ilógico, no sensorial, no
subjectivo, no subliminal. Meu lema é «tem de tudo». São
precisos muitos tiques e muitos toques para fazer um mundo.
No escuro não
enxergo, não entendo do que não sei, páro onde
me detenho, vou e volto cheio de saudades. Pois, se fico, anseio pelo
desconhecido. Se parto, rói-me a separação. Dou um boi para não entrar numa briga. Dou uma
boiada para sair dela.
Sou hesitante,
tenho, muitas vezes, o temor de desagradar, nem sempre sinto coragem de dizer
exactamente o que penso ou tudo que penso, emprego palavras mais suaves do que o criticado mereceria, ou perco a cabeça e uso um padrão
de julgamento agressivo e injusto. Sou, em suma, como todo o mundo.
Como quase
todo o mundo. Pois há os duros, os verdadeiramente sábios, e há os santos. Nem
por brincadeira devemos negar a existência dos privilegiados. Que existem e nos
salvarão a todos. Não perguntes por quem os sinos dobram.
Com esta crónica
planto aqui uma bandeira que esvoace a todos os ventos da nossa triste e
sufocada língua. Minha intenção é falar do circunstancial, do supérfluo, do
mínimo, do dispensável. Daquilo em que nós, cariocas, somos excelentes
- não a grande retórica mas a miúda conversa do pé de ouvido, se possível
ouvido, ai, que nem nos ouça. Vou falar desta cidade que não entendo para esse
vasto mundo de que não entendo.
Os que, por
acaso, forem um dia atingidos por qualquer pedra minha, que se defendam como os
lagos, na beleza indorida dos círculos concêntricos. O que eu houver dito será
somente uma opinião, pessoal e duvidosa. Como todo
jornalista tenho a esmagadora vantagem de ver minha palavra multiplicada pelo
número de exemplares do jornal em que escrevo. Mas é sempre bom lembrar: por
mais potenciado que seja o que digo, jamais
passará de uma opinião. Assusta-me influir mais do que devo - e mereço.
Estou longe de poder ou querer ser a palmatória do mundo. E isso por um motivo simples: acredito que, por
meu comportamento, trabalho, e modo de viver, qualquer um pode-me aceitar, sem muito esforço, como um «homem-de-bem» Mas estou
certo também de que, se a minha vida examinada
rigidamente, à luz dos códigos, eu pegaria pelo menos trinta anos de cadeia.
E, não sendo hebreu, eu beijo as plantas da mulher de Putifar.
Millôr Fernandes