quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Diário dos perplexos/Newspeak, a linguagem da reforma do estado


De novo a repetição. Amamo-la porque o futuro continua a acreditar em nós.
No 1984, Orwell analisa com minúcia obsidiante uma língua de pau imaginária, a newspeakque não era usada para significar coisa alguma, mas para, perlocutoriamente, obter um determinado efeito e anular todo o pensamento herético e heterodoxo. 
Bourdieu escreveu sobre as pessoas da sua geração que passaram sem dificuldade de um fatalismo marxista a um fatalismo neoliberal. Em ambos os casos, refere Bourdieu, o economicismo desresponsabiliza e desmobiliza, anulando o político, e impõe uma série de fins indiscutidos: competitividade, produtividade, crescimento máximo, austeridade, flexibilidade. Curiosos, segundo Bourdieu, são os jogos lexicais e duplos jogos verbais da novilíngua desta geração – caso do termo reforma, diria Bourdieu, caso do termo ajustamento, diremos nós – que, segundo uma lógica que é a de todas as revoluções conservadoras, apresentam uma restauração como se de uma revolução se tratasse. Justamente, um ajuste de contas.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Diário dos Perplexos/ Graças a deus, todas; graças com deus, nenhuma.

Na falta de pronunciamentos de melhor quilate, sobejaram-nos hoje duas fatwas. Na primeira, o xeque Ali al Hemki, membro do Conselho dos Estudiosos da Arábia Saudita, emitiu uma fatwa, um decreto islâmico, proibindo as viagens a Marte. Na segunda, o secretário de Estado do Desporto e Juventude do governo português e a Federação Portuguesa de Futebol (e outras potestades várias, deus meu!) emitiram um decreto irénico a proibir a caricatura humorística do Ronaldo. Ou, como dizia a minha avó Maria: graças a deus, todas; graças com deus, nenhuma.

Livros e pontas da língua

Há um par de anos, a New York Review of Books asseverava que 43% dos compradores habituais de livros nas livrarias francesas se deixam tentar pelo seu odor, e a CaféScribe, editora online, passava a distribuir uma tira de papel com cheiro a livro, que se pode colar ao e-book enquanto se lê um texto digital. Os livros são objectos transcendentes, mas, sim, di-lo Caetano Veloso, também podemos amá-los com o amor táctil que devotamos aos maços de cigarros. E por falar da coisa sensorial que é o livro, relembro as bibliotecas da faculdade, o gesto lúbrico e grácil das minhas colegas levando o dedo médio à comissura dos lábios, humedecendo-o com a turgidez tépida da ponta da língua e, cariciosas, folheando, folheando com desvelo digital. Desengane-se, pois, quem pense que a leitura é coisa exclusiva do olho e do espírito.  

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Portas, Bellow e o amor-próprio

Paulo Portas percebeu, como Saul Bellow, que o amor-próprio é uma ralação cansativa. Há que fazer qualquer coisa para limitar o número de pessoas cuja opinião nos pode afectar. Até se murmurinha para aí que o homem evita os espelhos. Ademais, acredita, como um dos heresiarcas de Uqbar, que o espelho e a cópula são abomináveis porque multiplicam o número dos homens.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

O Telemóvel de Agustina


Ler a destempo na revista Philosophie de Outubro um extenso dossier sobre o objecto social total, o telemóvel, e ficar em estupor com o prêt-à-penser de uma certa filosofia omnívora que, por de tudo se alimentar, acaba por confundir o pensamento com os movimentos peristálticos do esófago. Ler uma extensa entrevista com Maurizio Ferraris, filósofo italiano, autor do livro Tes Où? Ontologie Du Téléphone Mobile, e lê-lo a concitar o frequentadíssimo Heidegger para fazer a distinção entre o être-au-téléphone (fixe), evento ocasional, o permanente e ubíquo être-au-mobile, e, para usar ainda uma categoria heideggeriana como diz o entrevistado, a pauvreté-en-monde, no caso de privação de conexão.
Desde que Günter Grass inventou o verbo Heideggerizar, é muito mais fácil lidar com estes excessos epigonais, e, já agora, em verdade vos digo que a Agustina foi bem mais arguta. Ora aquilatem lá:
O telemóvel tomou o lugar da intimidade em que a carícia e o olhar são uma forma de maturidade sexual. Objecto masturbante, o telemóvel é um traço arcaico do neurótico e, por isso, tão rapidamente adoptado. Não podendo ser um condutor do pensamento, ganha em popularidade por dar um conhecimento acessório sobre os sonhos e a vida quotidiana.

(O Princípio da Incerteza – A Alma Dos Ricos)

domingo, 27 de outubro de 2013

Subiu aos céus e está sentado à direita


Houve tempos em que D. José Policarpo não gostava do profanum vulgus a desfilar, e achava que as manifestações são uma corrosão da harmonia democrática. Ao fazer uso da sabedoria prudencial longeva da Igreja, julgava apartar o político do religioso e acreditava não meter prego nem estopa nos conflitos que lavravam na sociedade portuguesa. Dobadas algumas semanas e meses, apeado D. José da cadeira do patriarcado e ainda não sentado à destra do pai, mas sentado deveras à direita, e eis que vem zurzir em todas as oposições que não apresentam soluções. Outrora, Policarpo fazia a useira e vezeira má política do quietismo ideológico religioso - a igreja não faz política, cumplicia com ela; a igreja não brada e contende por justiça, arremeda a caridade (não se dê por caridade o que é devido por justiça) -, agora, Policarpo exprobra com um vade retro as oposições e conclama que só os mansos herdarão a terra

sábado, 26 de outubro de 2013

Malala Yousafzai - 1, Oscar Wilde - 0


Oscar Wilde dizia que a man`s face is his autobiography, a woman`s face is her work of fiction. Mas o Wilde misógino enganou-se, porque há só dois géneros de pessoas: o que perde a face ganhando, e o que, quase a perdendo, nela inscreve a unicidade da sua aventura pessoal. Portanto, Malala Yousafzai -1, Oscar Wilde – 0. 

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Guia dos Perplexos/Como Não Mudar o Pessoal Político Usando o Comando da Televisão e Uma Citação de La Rochefoucauld


aqui se escreveu sobre a técnica, falaz, para Mudar o Pessoal Político Usando o Comando da Televisão e Uma Citação de La Rochefoucauld. Consiste no seguinte: procure o comando da televisão, sopese-o, liberte-se do efeito delusório da dúzia de botões, cite subvocalmente La Rochefoucauld - há certos defeitos que, bem apresentados, brilham mais do que a própria virtude - e, invocando toda a corte celestial, carregue a esmo. Aparecerá o mesmo, isto é, na última semana, José Sócrates.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

O Ano Em Que Sonhámos Perigosamente


De novo Slavoj Žižek. A Relógio D'Água, que tem vindo a editar com diligência o filósofo esloveno, publica agora O Ano Em Que Sonhámos Perigosamente. Malgrado este trabalho editorial extremoso, o meio intelectual português tem sido, genericamente, incurioso em relação à sua obra. No Expresso, Henrique Raposo apodou-o, com a habitual soltura opinativa, de Althusser do nosso tempo, e comprazeu-se nessa espécie de exprobração remissiva. Desidério Murcho, no blog da Crítica, postou sobre Žižek e a política contemporânea a partir de uma entrevista do pensador esloveno à BBC, e os automatismos de simplificação analítica revelaram a singeleza símplice dos simples. Não fosse a escrita avisada de, por exemplo, António Guerreiro, e Žižek passaria, em Portugal, por ser o filósofo pop que mistura marxismo com cultura pop e psicanálise, isto é, um psicobolche seduzido pela cultura popular. Žižek nutre, é claro, um enorme fascínio pelo cinema e, ultimamente, muitíssimo pela televisão, mas esse fascínio é muito mais do que um mero encantamento ou mal do olhar, antes a consciência do seu valor hermenêutico, doador de inteligibilidade ao mundo actual. É quase como se, di-lo Žižek a propósito da série The Wire, o Weltgeist hegeliano se tivesse deslocado, nos últimos tempos, do cinema para as séries de televisão, que, à semelhança da tragédia grega, fornecem um tipo de autorrepresentação colectiva de uma cidade e nas quais a polis põe colectivamente em cena a sua experiência. E que experiência é esta? A experiência fatalista do antigo destino, agora representado pelo poder latitudinário e anónimo das novas forças do Olimpo: as instituições pós-modernas, a economia, o mercado. Este último, aliás, testemunha, escreve-o Žižek, uma nova forma de prosopopeia em que a coisa que fala é o próprio mercado, agora visto como uma entidade mítica que reage, alerta, esclarece opiniões, etc., e até pode exigir sacrifícios como um antigo deus pagão. Por exemplo, de uma constituição.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Sex Files/ Até Onde Se Pode Ir?

Um texto recente da blogosfera relembrou-me o jovial Até Onde Se Pode Ir?, no qual David Lodge biografou as vidas eróticas de um grupo de estudantes universitários católicos ingleses, nascidos no pós-guerra, e para os quais a revolução sexual chegou tarde de mais. Nados e desmamados na ortodoxia vaticanista do Catolicismo, rigorista e sexófoba, a via profana do sexo pré-marital, marital, extra-marital, pós-marital, é uma via crucis de temores e ardores, dúvidas e aporias: o que se pode fazer? Quais os limites?

No Mau Tempo no Canal, escreve Nemésio a certa altura que o caminho da castidade é mui árduo e encosta arriba, e Lodge, especialista na efabulação ético-religiosa, faz percorrer as suas personagens metade desse caminho, expondo-as às aporias decorrentes do Concílio Vaticano II e da encíclica Humanae Vitae e romanceando uma das vexatae quaestiones da Igreja – o sexo católico -, sobre a qual, em boa verdade, um certo catolicismo prefere passar como cão por vinha vindimada.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Prof.

Borges tinha a suspeita de que a espécie humana estaria prestes a extinguir-se e que a Biblioteca perduraria iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta. Hoje, a descrição Borgeana da Biblioteca arrepia o couro cabeludo dos professores bibliotecários, que a concebem prestimosa e funcional como um canivete suíço, convivial e versátil como uma sala de estar.
Num passado não muito longínquo, a Biblioteca Escolar adequava-se folgadamente à descrição de Jorge Luís Borges: um local não raras vezes soturno, que impunha um mutismo constrangido, não propício ao sururu da converseta e ao bruaá dos gadgets electrónicos. A biblioteca escolar era um espaço académico que decorria de uma concepção devocional do saber e da cultura, no qual mortos viviam e os mudos falavam. Era o silêncio dos livros, posto hoje em causa pelo gadgetismo reinante das novas Tecnologias do Espírito, cuja propensão distractiva conflitua com aquilo que Derrida designa como a clausura do livro e a abertura do texto. Com a argúcia panóptica proverbial, disse recentemente Steiner que as pessoas vivem no meio da algazarra e os jovens têm medo do silêncio. E inquiria: O que vai acontecer às leituras sérias e difíceis? Ler uma página de Platão com um walkman nos ouvidos?

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Diário dos Perplexos/ E a melhor definição de "politicamente correcto" é...

Volvido um par de semanas sobre a invocação de Masoch por Cavaco Silva a propósito da dívida que nos derreia mas não derreia, e eis que um presuntivo grupo de zelotas sádicos, professos quiçá do ai aguenta aguenta, ameaçava promover uma acção de apoio à troika. O que se diria? Nada. Soçobraríamos na mornidão dos truísmos do politicamente correcto: que também têm direito, e a liberdade de expressão pois então, e o não concordo com o que dizes mas defenderei até à morte o direito de o dizeres, e mais isto, e mais aquilo. Pois é. O politicamente correcto é um passe-partout retórico e doutrinário que, segundo uma novel definição, digna do Dicionário do Diabo do Bierce, sustenta a ideia de que é inteiramente possível pegar num pedaço de merda pelo lado limpo. Ora, hoc opus, hic labor est, aqui é que a porca torce o rabo. Não é.

domingo, 20 de outubro de 2013

Diário dos Perplexos/Veríssimo e a Fome


Hoje, depois da leitura de um artigo sobre a proliferação micológica das agremiações de jantaristas, apodadas fraternalmente de confrarias, lembrei-me do Fernando Veríssimo. Imaginei-o a escrever O Clube Dos Anjos após um empanzinanço de Boeuf Bourguignon. O ventre lêvedo a roçagar no tampo da secretária. A tensão no cós das calças e os dedos a ladrilhar no teclado: «Nem todos os dias se quer ouvir uma estaladiça fuga de Bach ou amar uma mulher suculenta, mas todos os dias se quer comer. A fome é o único desejo reincidente. A visão acaba, a audição acaba, o sexo acaba, o poder acaba – mas a fome continua». Depois liguei o televisor, esgueirou-se o humor, e aí está, insopitável, a uníssona conclamação universal do Veríssimo: a fome continua!

terça-feira, 15 de outubro de 2013

O que Agustina sabe dá para arrasar montanhas


Agustina faz hoje 91 anos. Reescrever o que se escreveu há um ano. Porque sim. Porque, para glosar uma sageza hodierna, gostamos da repetição. É como se o futuro acreditasse em nós.

Como um vade mecum literário para ler o mundo dos homens quando os não percebo, guardo dezenas de citações manuscritas dos romances de Agustina. Leio-as sempre com o espanto renovado de quem vê eclodir um ovo, isto é, a aparição de uma sabedoria natural primigénita. Sem a paciência do conceito ou a motilidade do argumento, os livros de Agustina estão pejados da sabedoria do concreto a que só a literatura acede, sem academia ou sistema.
Um dia uma mulher, talvez extasiada pela sageza sibilina de Agustina em alguma entrevista televisiva, abordou-a na rua e disse-lhe que gostava tanto dela que um dia ainda lia um livro seu. Se o leu, tornou-se mais sabedora, porque, glosando uma dessas citações, o que Agustina sabe dá para arrasar montanhas.

sábado, 5 de outubro de 2013

Swap, Swap, Swap


Há meia dúzia de dias e a propósito do bruaá dos swaps, um administrador de uma empresa pública teve o descoco de vir a público dizer que era frequente os banqueiros fazerem fila à porta do seu escritório com o propósito benfazejo de lhe emprestar dinheiro. E, num arrebato de franqueza, chegou mesmo a dizer que alguns dos sobreditos até metiam cunhas aos ministros para serem recebidos. Ora, como muitos administradores já foram banqueiros e podem voltar a ser, e, conversamente, como muitos banqueiros já foram administradores e podem voltar a ser, quinhoando também os ministros que já foram ambas as coisas e virão a ser o que lhes aprouver, estamos conversados.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Prof.

Uma disciplina nova. Trinta juvenis ougados por diplomas e excelência escolar. Leio as finalidades do programa da disciplina e a coisa parece-me hiperbólica. Leio, releio, tresleio: proporcionar mediações conducentes a uma tomada de posição sobre o sentido da existência
E eu que gosto é do afofado travesseiro da indecisão!

Morrissey na Penguin Classics


Uma autobiografia de Morrissey na Penguin Classics? É grande o merecimento e, bem vistas as coisas, o tipo que disse que there's more to life than books, you know, but not much more já faz parte do cânone.